A PSICOLOGIA E AS TORRES DE MARFIM por Sérgio Fonseca

02-08-2022

Psicólogo privado inscrito na Ordem dos Psicólogos Portugueses; Mestre em Psicologia do Comportamento Desviante e da Justiça pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP); Licenciado em Ciências Psicológicas e Pós-Graduado em Redução de Riscos no Consumo de Drogas e Trabalho Sexual (FPCEUP); Doutorando em Psicologia com o tema "Memória e Emoção no Trauma Psicológico" (FPCEUP);

O envolvimento de psicólogos em contexto de emergência, catástrofe e trauma tem-se generalizado nos últimos anos. E bem! No entanto é necessário que tal seja feito com cuidado, profissionalismo, responsabilização e, fundamentalmente, com toda a atenção no real beneficio da vitima. 

Sérgio Fonseca, psicólogo e formador ISO-SEC, reflete sobre este pertinente assunto.

A PSICOLOGIA E AS TORRES DE MARFIM

Por: Sérgio Fonseca

Solicito aos leitores que resistiram à "leitura na diagonal" das próximas linhas. São linhas de um convite para uma reflexão baseada na minha experiência pessoal enquanto estudante de Psicologia e psicólogo que, permitam-me a audácia, seguramente será transversal a muitos de vós.

Atualmente em Portugal são exigidos 5 anos de ensino superior, público ou privado, para se obter o diploma universitário em Psicologia. Findo este percurso estamos a criar uma expetativa lógica à Sociedade mas, em alguns aspetos pertinentes, deveras débil. Significa que a Sociedade pressupõe que um diplomado em Psicologia esteja devidamente habilitado para intervir em emergência e catástrofe ou nas consequências dessas mesmas situações, concretamente no trauma psicológico. Mas, de facto, não é isto que se verifica. O senso comum expresso no "se é psicólogo então trate do meu trauma" ou "se é psicólogo venha ali estabilizar aquela pessoa" esbarra de frente contra uma oferta curricular universitária, nestes temas, afastada da realidade do século XXI. Já para não falar que cada vez é mais comum as instituições públicas e privadas ativarem o apoio psicológico (?) para acudir a situações graves. Poderia ainda ser mais incisivo e questionar se dentro das paredes de uma qualquer faculdade de Psicologia o suicídio é abordado com o rigor, com a frontalidade e com a profundidade analítica que tanto merece esta ferida nacional demonstrada pelas estatísticas. Mas isso ficará para outra altura.

O trauma, e a catástrofe sempre foram temas que me despertaram particular interesse devido a situações pessoais e ao facto de procurar estar, o mais e melhor possível, informado das dinâmicas da sociedade global. Contudo, desde cedo tive de recorrer à aquisição de formação extra académica para obter conhecimento científico teórico sólido associado a uma aplicação prática responsável e concertada. E porquê? Porque simplesmente estes temas não fazem parte dos planos curriculares ou pecam pela sua subtil presença. E, apesar de tudo, ainda hoje continuo agarrado firmemente à máxima do "pouco sei". Porquê? Porque resisto em aprisionar-me numa torre de marfim mental. Preciso de continuamente aprender com colegas de profissão; com profissionais de emergência e socorro; com as vítimas pois são elas as verdadeiras especialistas porque são elas que sentem; e com os ignorantes pois é com estes que percebo o quanto ainda falta por ensinar e sensibilizar. Em suma, não existe uma cultura de Proteção Civil nas faculdades de Psicologia nacionais. E "Proteção Civil" implica o compromisso de todos em especial daqueles e daquelas que têm valências que podem fazer a diferença na manutenção da qualidade de vida das pessoas nos momentos mais dramáticos.

Mas, na minha opinião, esta realidade deve-se ao facto da Psicologia estar aprisionada em Torres de Marfim e guardada por uma força cristalizada de ensino deste Saber. Reconheço ter alguma dificuldade em perceber como tantos docentes nunca exerceram Psicologia ou raramente o fizeram (e muitos casos apenas em tempos remotos das suas carreiras). Não coloco em causa a sua competência académica e científica mas legitimamente sou absorvido pelo questionamento da sua atualização e adaptação à realidade de hoje. Obviamente que os alicerces para o conhecimento da Psicologia, na sua globalidade, são e serão sempre os mesmos. Afinal uma roda será sempre uma roda seja numa carroça ou num carro elétrico. Todos os anos se fazem centenas de teses de mestrado e muitas resultam de escolhas temáticas condicionadas pela imposição do Orientador. Ou porque ele próprio já está a trabalhar determinado tema ou porque resiste à inovação do seu próprio Saber. E são tantos os exemplos de alunos e alunas que gostariam de, também, explorar o tema da Psicologia de Emergência e Catástrofe e vêem-se limitados pelo número reduzido de orientadores disponíveis para tal.

Louvo o papel importante, responsável e oportuno da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) que disponibilizou um vastíssimo leque de formações acreditadas, em variados temas, que visam não só colmatar as carências do Ensino Superior mas também incentivar à permanente atualização do Saber da Psicologia. É, indubitavelmente, uma iniciativa de elevado impacto científico e profissional.

Considero importante passar a mensagem para o interior das Torres de que a aprendizagem do adulto (sim porque o estudante universitário já o é!) se faz, essencialmente pelo interesse que este tem naquilo que está a ser ensinado. E este interesse está dependente do proveito e da aplicabilidade pessoal do conteúdo aprendido. Significa que o conteúdo deve responder o mais integralmente possível às necessidades do aluno. A bitola da reformulação curricular deveria ser regulada pela trilogia do Saber: Saber/Ser-Estar, perceber o que se espera futuramente de cada psicólogo; Saber/Saber, conhecer os processos, procedimentos e operacionalidade da futura função de psicólogo adaptando-os a circunstâncias concretas; e, finalmente, o Saber/Fazer relacionado com a execução sólida da prática e da operacionalidade permitindo ao aluno adaptar o que aprendeu à realidade contextual e humana envolvida. Sinteticamente, é tornar a Andragogia num novo cavalo de Troia e invadir as Torres de Marfim.

Não reclamo que esta adaptação curricular consiga atingir o grau de especificidade técnica presente nas formações OPP ou de outras empresas de formação, estaria a ser utópico. Mas é preciso refletir profunda e humildemente para dar oportunidade à Psicologia para poder contribuir eficazmente para uma Proteção Civil que se pretende que seja preventiva, eficaz e reparadora da normalidade.