BRICS - Paralelos de um mundo multipolar cada vez mais complexo por David Morgado

David Morgado é formador da ISO-SEC nas áreas do Ciberterrorismo, Cibersegurança, Ciberdefesa, Ethical Hacking e Segurança da Informação.
Na semana decorrente, sem que fosse muito mediatizada, ocorreu a 15ª Conferência dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (South Africa) em Joanesburgo. O pouco mediatismo que teve foi nomeadamente sobre a presença russa, que, em vez do seu Chefe de Estado, Vladimir Putin, foi o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, a representar Moscovo. Temas como recursos naturais, reservas alimentares, trocas comerciais, uso de moedas que não o dólar e outras questões geopolíticas foram debatidas, mas pouco divulgadas.
Mas o que devia ser mais divulgado para além dos fóruns geopolíticos habituais, é a admissão de novos membros a partir de 1 de janeiro de 2024 a este grupo geopolítico e económico, designadamente a Argentina, o Egipto, o Irão, a Etiópia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, assim como o seu impacto a curto-médio prazo. A maioria destes países, possuem ou possuíam laços políticos e económicos com o bloco ocidental, nomeadamente os Estados Unidos da América (EUA), o que introduz logo aqui uma mudança no eixo geopolítico mundial.
De facto, analisando de perto cada um dos novos atores, as suas características geográficas, políticas, económicas e até socioculturais, os novos membros do grupo BRICS trarão uma nova faceta a um mundo cada vez mais multipolar e complexo.
Argentina
Começando pela Argentina, se numa perspetiva financeira não se evidencia à primeira vista como este país de moeda hiperinflacionada poderia ser um elemento pertencente a este grupo que entra numa espiral de colisão cada vez maior com o G7, é exatamente por esse facto que é desejável.
Carente de divisas, o investimento estrangeiro irá aliviar a balança bastante negativa da terceira maior economia latina, sobretudo através da China pela concessão de portos para a manutenção das suas linhas de abastecimento (supply chains) em termos de recursos naturais e de produtos alimentares para uma população chinesa cada vez maior. Ironicamente, uma das "moedas de troca" será o uso do yuan nas transações financeiras em vez do dólar, o que aumentará a importância da moeda chinesa como reserva financeira, ainda que de forma percentual. Por outro lado, a ligação cada vez mais dependente da Argentina aos empréstimos chineses, poderá abrir uma porta ainda maior a Pequim à Antártida, território até ao momento ainda considerado como património da Humanidade. Na região da Patagónia argentina já pode encontrar uma estação espacial chinesa operada por militares e encontra-se em estudo a aquisição de material militar chinês, também este com recurso a empréstimos provenientes de Pequim.
Mas não foi só a China que procurou trazer a Argentina para a Esfera dos BRICS. Para o Brasil, seu vizinho e país com mais laços económicos, a adesão da Argentina permite manter o fluxo de exportações, através de empréstimos cujas garantias serão dadas por yuans chineses, identificando-se aqui um triângulo interessante de relação político-económicas entre estes três países.
Por último, a adesão de mais um país latino aliciará outros a juntarem-se, alguns já com laços político-económicos consistentes com a Rússia e a China, como o caso de Cuba, Venezuela e Bolívia, aumentando a esfera de influência dos BRICS, e em último caso da Rússia e da China, mais perto dos Estados Unidos.
Egipto
A adesão do Egipto aos BRICS não vem ao acaso. Face à dependência cada vez maior das rotas marítimas no comércio mundial, a possível influência num estreito ou num canal, mesmo que apenas em termos especulatórios, poderá causar impactos nos preços dos produtos. Em termos económicos, face à redução de ajuda norte-americana, a adesão aos BRICS poderá fornecer ao Egipto a oportunidade para conseguir outras fontes de investimento estrangeiro, e realizar trocas comerciais usando a sua moeda, bastante inflacionada após o "abandono" do dólar americano.
A redução da ajuda por parte dos Estados Unidos, um aliado de décadas, provocou de igual forma uma maior proximidade do Egipto à Rússia, observada pelo suposto fornecimento de material militar após o início da guerra na Ucrânia, em troca de cereais, e de igual forma, à China e à Índia, através de trocas comerciais recorrendo às moedas locais em vez do dólar americano. A Índia e a China, através de empréstimos, detêm atualmente áreas ao longo do canal do Suez dedicadas às suas indústrias, programas de formação bilateral com o Egipto e atividades comerciais.
A adesão não só do Egipto mas também dos outros países de fé muçulmana irá introduzir neste quadro complexo um novo elemento, cujo alinhamento poderá ser bastante complexo de gerir e de se jogar com. E se a contestação internacional contra a repressão chinesa à comunidade Uyghur ainda se mantém ativa, também a realpolitik continua a falar mais alto. Por outro lado, tanto a Rússia, como a China e a Índia não apregoam valores que possam entrar em conflito com os regimes dos países com quem transacionam, mesmo os mais autocráticos, o que os tornam parceiros políticos aliciantes, nomeadamente para países que procuram investimento e divisas estrangeiras.
Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos
A exposição destes dois países de forma agregada prende-se com o facto de serem, no Médio Oriente, para além de parceiros, grandes centros políticos e financeiros, além de serem dos maiores fornecedores de energia do mundo através de hidrocarbonetos. Também eles, mais uma vez, possuem relações estreitas com os EUA, o que provoca alguma conjuntura sobre se essas relações se manterão inalteradas.
Em termos geográficos, a sua posição central e, com a adesão aos BRICS, a abertura a mais mercados, permitirá um realinhamento geopolítico, talvez até mais neutral. Apesar do seu equipamento militar ser sobretudo de origem norte-americana, o compromisso de segurança dos EUA na Região do Golfo Pérsico não está a ter sucesso, o que torna atrativo para atores que o pretendam substituir nesse papel.
O facto destes dois países muçulmanos entrarem neste bloco, poderá ainda aliciar mais países terceiros que partilhem a mesma fé, como a Turquia, a Jordânia ou mais países do norte de África. Atendendo a que estes países enunciados possuem bastantes relações políticas e económicas com o bloco ocidental, destacando-se aqui a União Europeia, a sua adesão poderá também pôr em causa a continuidade das mesmas por influência de agentes terceiros, destacando-se aqui os possíveis impactos económicos e de segurança.
Irão
A adesão do Irão ao BRICS fornece uma miríade de questões, dúvidas e previsões. Face à sua posição quase isolada no palco mundial, a sua adesão provém das ligações reforçadas recentemente com a Índia, a Rússia e a China. Neste âmbito, destaca-se o papel da China, que conseguiu colocar à mesa das negociações tanto o Irão como a Arábia Saudita, rivais geopolíticos e religiosos, promovendo um ambiente de reconciliação naquela região. Com a adesão destes três países árabes, esta entente, para além de diminuir a influência dos EUA naquela região, dota os BRICS de uma posição privilegiada no Golfo Pérsico, e quem diz os BRICS, diz os Estados referidos anteriormente. Para a China, este passo, em junto com as suas ações de soft power, permitirão o alargamento da sua Belt and Road Initiave por toda a região do Golfo Pérsico, uma região que Pequim considera crítica para a sua estratégia expansionista.
Por outro lado, o Acordo Nuclear entre o Irão e os EUA, apesar de atualmente encontrar-se em estado latente, toma aqui novas proporções. Com a Arábia Saudita, também ela desejosa de possuir tecnologia nuclear, e o Irão "alinhados", os BRICS fundadores, quase todos países nucleares, poderão defender a capacitação nuclear dos seus novos membros, mesmo que "apenas" em termos energéticos. Tal movimento irá provocar um pender da balança do poder ainda mais desfavorável para os EUA, pois estes terão de envidar mais esforços na monitorização daquela região, desviando preciosos recursos que seriam alocados noutras regiões, nomeadamente no Pacífico, de modo a conter a expansão de Pequim.
Para o Irão, este passo será bastante benéfico para a sua economia, podendo significar também uma maior recetividade a nível mundial da sua política doméstica. Em termos militares, o estreitamento de laços com a Rússia, a Índia e a China irão permitir a transferência de tecnologia e material militar, sobretudo para a Rússia, grande cliente dos meios não tripulados iranianos para serem usados na Guerra da Ucrânia pelo seu baixo preço.
As exportações para a Rússia e os empréstimos chineses permitirão ao Irão investir nas suas infraestruturas, bastante degradadas e atrasadas. Para além do desenvolvimento da Belt and Road Initiative na sua região, a existência de fundos para a criação de um corredor que ligue Teerão a Moscovo, o International North-South Transport Corridor (INSTC), dotará o Irão de uma maior autonomia em relação aos seus vizinhos mais próximos caso as sanções internacionais voltem a se agravar. Neste ponto, destaca-se o papel que o porto de Bandar Abbas poderá possuir na região. Localizado à entrada do Golfo Pérsico, com investimento chinês e próximo da Índia, da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, poderá constituir-se uma das peças mais importantes da geopolítica iraniana.
Sendo uma autocracia de índole religiosa, os laços agora expandidos com a Rússia e a China, irão permitir também uma maior partilha de TTPs (Táticas, Técnicas e Procedimentos) e de Políticas de segurança e vigilância estatais, muitas delas violadoras dos Direitos Humanos. Paralelamente, a existência deste tipo de Bloco, irá legitimar a existência de governos autocráticos e das suas ações de controlo das populações, pondo em causa os valores da liberdade e da democracia.
Etiópia
Devastada por conflitos e por períodos de fome, a Etiópia é cobiçada por todos os BRICS e não só pela sua posição geográfica no "Corno de África", proximidade ao Canal do Suez e ao Golfo Pérsico, permitindo navegar no triângulo China-Rússia-EUA com relativa facilidade.
Com as suas infraestruturas bastante debilitadas e um governo autocrático fragilizado, o apoio externo em termos de empréstimos financeiros, investimento e forças de segurança tem permitido o país manter alguma estabilidade, ao mesmo tempo que procura arranjar novas formas de desenvolver a sua economia, bastante alimentada pelas diversas bases militares estrangeiras localizadas sobretudo junto à costa.
No espetro sociocultural, destaca-se a sua ligação especial com a Rússia, pois, tal como a Eritreia, possuem como religião maioritária o cristianismo ortodoxo, o que lhe confere uma posição privilegiada. Tal facto pode ser observado aquando da votação de uma resolução das Nações Unidas contra a Rússia devido à Guerra na Ucrânia. A China, a Índia e a África do Sul abstiveram-se. Tal como a Etiópia. Este acto identifica uma possível postura a curto-médio prazo – a defesa dos interesses dos parceiros nas Organizações Internacionais, nomeadamente no Conselho de Segurança e na Assembleia da ONU.
A postura dos BRICS e dos seus Estados Membros comprova que este Bloco não procura apenas ser um Bloco económico. Apesar de muitos aspetos terem sido repetidos nos novos países membros do BRICS, pode-se considerar que a estratégia para a sua adesão foi simples: abrir mais os mercados, dar garantias de segurança económica e financeira, uso das moedas locais, não interferência com as políticas domésticas e criar uma rede de Estados em zonas estratégicas a nível global de modo a aliciar mais países no futuro. Por outro lado, para os novos membros e potenciais futuros membros, sobretudo os países de economias e governos mais frágeis, a adesão aos BRICS permite uma abertura maior aos mercados internacionais, ao capital e ao investimento estrangeiro, sem que terem de entrar diretamente na competição China-EUA.
Analisando agora os ganhos mais intrincados que os países fundadores do BRICS adquirirão, cada país irá sair beneficiado sobretudo no médio e longo prazo. A China conseguirá aumentar ainda mais o seu soft power a nível global, aumentando o seu raio de ação para, com empréstimos benevolentes, considerados pelo mundo ocidental como arimadilhas financeiras (debt traps), adquirir novos pontos de extração de recursos naturais, portos para escoamento de produtos e guerras económicas contra os seus adversários, assim como a continuação dos seus projetos globalizantes da Belt and Road Initiative e da Digital Silk Road. Com isto, a China pretende manter não só o crescimento da sua economia, mas também a sua manutenção, de modo a substituir os EUA numa nova Ordem Mundial.
Para a Rússia, a adesão dos novos membros, muitos dos quais mantém laços económicos mesmo com a guerra na Ucrânia, permitirá manter alguns mercados para os seus produtos (e até alargá-los), garantir a sustentabilidade do rublo a longo prazo e defender os seus interesses no palco político internacional, sobretudo no que toca à guerra com a Ucrânia. Mesmo que alguns Membros afirmem estar politicamente contra a guerra, a continuidade das trocas comerciais com eles permitirá à Rússia manter a sua atividade bélica no território ucraniano. Ao mesmo tempo, a sua influência em África, na Ásia e no Médio Oriente continua a aumentar, nomeadamente em África, através de organizações de segurança privada como a Wagner e do envio de ajuda alimentar de forma gratuita. Caso aconteça uma nova votação nas Nações Unidas contra as ações da Rússia na Ucrânia, mesmo que o número de apoiantes da Rússia não aumente, as abstenções dificilmente serão as mesmas que as anteriores.
Já para a Índia, adesão de novos membros no BRICS demasiado alinhados com a China poderá ir contra a sua agenda política. De modo a contrariar essa hipótese, a Índia tem promovido projetos de cooperação e desenvolvimento, aumentando a sua influência como membro original agregador, ao mesmo tempo que pretende impedir a China de usar os BRICS para os seus objetivos geopolíticos, como isolá-la das principais rotas marítimas. Ao mesmo tempo, a Índia tem mantido relações mais ou menos estáveis com os países do G7, nomeadamente os EUA, de modo a manter todas as opções em aberto e mostrar que é um a potência regional a ter em conta.
No que toca ao Brasil, a adesão da Argentina permitirá manter este país sob a sua esfera de influência, ao mesmo tempo que garante a manutenção das trocas comerciais com o seu maior parceiro comercial com recurso a moedas estáveis como o real e o yuan. Mais ainda, ter mais um país latino nesta organização permitirá ao Brasil possuir uma maior alavancagem na prossecução dos seus objetivos estratégicos em termos de política externa. Face a ser um tema de discórdia na Argentina, o Brasil poderá tentar influenciar a opinião pública nas próximas eleições presidenciais, de modo a manter a Argentina na sua esfera de influência. Por outro lado, tal como a Índia, o Brasil goza de boas relações com os EUA e os países da Europa, permitindo-se constituir também como um ator "apaziguador" entre os EUA e a China, ao mesmo tempo que procura elevar o seu estatuto de potência regional.
Por fim, para a África do Sul, país cujo maior parceiro comercial são os EUA e o segundo a China, a inclusão de países alinhados com os EUA nos BRICS permitirá uma maior alavancagem junto a este, ao mesmo tempo que expande as suas relações com a China e mantém a sua controversa política interna e externa. Suspeita de fornecer armas à Rússia e por isso, violar as sanções contra Moscovo, o governo de Pretoria chegou a ser intimado por Washington de não ser incluído nos seus acordos comerciais, nomeadamente no African Growth and Opportunity Act. Por outro lado, a África do Sul não esqueceu de que lado os EUA estiveram durante o governo do Apartheid, e do seu apoio à UNITA durante a guerra civil angolana, como o exercício naval com a Rússia e a China demonstraram.
Mas se os novos membros do BRICS fornecem uma perspetiva interessante, os potenciais candidatos também não deixam de nos intrigar sobre o que o futuro nos reserva. Sendo o leste da Ásia e do Pacífico uma zona estratégica para os Estados Unidos, o pedido de adesão de países membros da ASEAN traz novas questões (e dúvidas) ao xadrez geopolítico. A Indonésia e a Tailândia, para além de disputas económicas com a China, enfrentam atualmente disputas no mar do Sul da China, não só em termos de território marítimo per si, mas também por recursos naturais, críticos para as economias e sociedades costeiras.
No caso da Indonésia em particular, sendo o maior Estado muçulmano, caso adira a este bloco, as questões (e influência) religiosas poderão passar a ser assunto recorrente. Apesar de haver mais países muçulmanos a submeterem a sua candidatura, a Indonésia merece um lugar de destaque, pelo facto de estar a assumir a presidência na ASEAN este ano e estar a receber e a procurar ainda mais investimento estrangeiro, nomeadamente ocidental. Tal contexto permite a este país ser assediado tanto a ocidente como a oriente, usufruindo deste estatuto central para colher dividendos. Na política, tal como na guerra, vale tudo, ou não fosse a guerra "política através de outros meios" como escreveu Clausewitz.
Já no caso da Nigéria, a maior economia africana, a sua ligação com o ocidente poderá ter sido uma das razões de ainda não ter sido admitida. Um fator que poderá ser relegado, face a Abuja já usar o yuan como moeda de reserva e a sua política interna estar mais alinhada com o estilo de governação de Moscovo e de Pequim. Rica em petróleo e já com relações com o Brasil, a Rússia e a China, a adesão da Nigéria ao BRICS seria mais um golpe ao status quo estabelecido, pois absorverá mais um país da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo).
Observa-se assim, que a 15º Conferência dos BRICS provou não ser apenas mais uma reunião de Chefes de Estado, nem tão pouco a "abertura do clube" a novos membros. A sua atividade constitui-se uma dinâmica que deve ser acompanhada de perto, e cujas ações não deverão ser analisadas e previstas somente do ponto de vista político e económico. O xadrez geopolítico acabou de ficar mais complexo. Por um lado, temos países emergentes como a Índia e a África do Sul, cujas posições políticas, geográficas e económicas asseveram o multipolarismo e a autonomia política e económica. Por outro, o alinhamento dos países emergentes num Bloco coeso poderá levar a um novo bipolarismo da Ordem Mundial.
Se os EUA e o próprio ocidente pretendem manter a Ordem Mundial, deverão reagir assertivamente, deixando de parte as presunções socioculturais que muitas vezes dominam as suas decisões. Já o status quo, esse, será quase impossível manter num mundo em constante mudança.