DOS PERIGOS EM ZAPORÍJIA AO BIOTERRORISMO CONTEMPORÂNEO por Luísa Barateiro
A RELEVÂNCIA DA SAÚDE PÚBLICA NA GESTÃO DE CATÁSTROFES E CRISES HUMANITÁRIAS

Luísa Barateiro é Bióloga e formadora da ISO-SEC na área da saúde em catástrofes e crises humanitárias. Mestranda em Epidemiologia e Saúde Pública.
"Falhar em preparar-se é preparar-se para falhar."
Benjamin Franklin
A gestão eficaz de crises requer uma colaboração sinérgica entre estruturas estatais, organizações não governamentais e entidades internacionais.
Em contexto de catástrofe, a saúde das populações é gravemente afetada, pelo que se impõem respostas estratégicas que considerem as necessidades imediatas e de médio e longo prazo.
A preparação é o core de uma resposta eficaz. Antes que um desastre ocorra, é imperativo desenvolver planos de contingência abrangentes que considerem todos os cenários possíveis e identifiquem as vulnerabilidades das infraestruturas de saúde local e regional. Esses planos devem incluir medidas de prevenção, alerta precoce, mobilização de recursos humanos e materiais, bem como estratégias de comunicação e coordenação entre todas as entidades envolvidas, locais e internacionais.
Quando há notícia de uma crise, desastre ou catástrofe, rapidamente são mobilizados meios para o auxílio às populações e geram-se ondas de solidariedade e ajuda humanitária.
Porém sendo de louvar toda essa mobilização, na prática, a gestão e intervenção em contexto de catástrofe apresenta uma enorme complexidade que exige planeamento e estratégia de longo prazo a realizar por profissionais especializados na área.
Neste sentido, a gestão de catástrofes não deve cingir-se ao período de crise. Deverá, pois, ser um trabalho contínuo, de prevenção, monitorização, planeamento para intervenção em crise e pós-crise, para que a resposta ao evento seja o mais rápida e eficaz possível. O papel de um gestor de catástrofes vai muito para além da catástrofe propriamente dita, exigindo um conhecimento amplo e capacidade para a elaboração de planos de contingência abrangentes, considerando diversos cenários e adaptando-se às peculiaridades de cada região.
A saúde pública deverá permanecer como um imperativo ético e humanitário, um direito inalienável, sendo que cabe, também, aos gestores de catástrofes zelar para que a saúde das populações seja protegida e preservada nestes contextos.
Os 10 principais desafios da atualidade
Assim, de uma forma geral, no domínio da Saúde Pública em contexto humanitário, destacam-se, atualmente, 10 principais desafios. [1]
· Sistemas de Saúde
Em contexto de catástrofe, a capacidade de resposta dos sistemas de saúde locais necessita de ser ampliada e reconfigurada. Tal implica a mobilização de profissionais de saúde de outras regiões, a abertura de centros de triagem e atendimento temporários, a aquisição de material adicional e a implementação de protocolos de atendimento emergenciais. É frequente que este tipo de evento ocorra em locais com sistemas de saúde já vulneráveis e limitados, fruto de múltiplos fatores, designadamente ambientais, políticos e económicos, típicos de países em desenvolvimento.
Tendo em conta a crescente dependência de sistemas informáticos no domínio da proteção civil, saúde e gestão de crises, a cibersegurança passou a ser um ponto central para o sucesso de uma missão ou programa de ajuda humanitária. Considerando que hospitais e unidades de saúde são cada vez mais alvo de ataques em contexto de conflitos e/ou terrorismo, assegurar o funcionamento destas estruturas, protegendo os sistemas de ciberataques, é um ponto crítico. [2]
Por outro lado, a incorporação de tecnologias de diagnóstico e terapêutica avançadas, bem como a análise de dados de saúde em tempo real são cruciais para enfrentar com sucesso os desafios em saúde pública, permitindo, por exemplo, uma alocação mais eficiente de recursos e a identificação precoce de fenómenos epidemiológicos. Após o conflito, a reconstrução das infraestruturas de saúde e o fortalecimento da capacidade local são essenciais para garantir uma recuperação sustentável. Investir na capacitação de profissionais de saúde locais é fundamental para restabelecer um sistema de saúde resiliente.
· Saúde Mental
A saúde mental é uma área cada vez mais relevante em contexto de catástrofe. A exposição a eventos traumáticos pode gerar efeitos psicológicos duradouros na população afetada, bem como nos profissionais de saúde e ação humanitária envolvidos na resposta. A implementação de programas de apoio psicossocial, auxílio à reunificação familiar, dinamização de grupos de ajuda mútua, atendimento especializado em trauma psicológico, luto e violência sexual são imprescindíveis.
Tendo em consideração as necessidades de grupos populacionais específicos, destacam-se três domínios que necessitam de estar incluídos na formação dos agentes que atuam no terreno:
A. Gerontologia
B. Psiquiatria - Intervenção em casos de patologia psiquiátrica grave: a intervenção psicológica numa crise de pânico resultante da perda de um familiar, da sua casa ou de todos os seus bens é complexa, no entanto, se a pessoa sofrer de alguma doença psiquiátrica grave prévia, por exemplo, esquizofrenia, e se encontrar sem acesso à sua medicação diária, a descompensação e possibilidade de ocorrência de um surto psicótico é maior.
C. Apoio a pessoas surdas, cegas ou com outro tipo de acompanhamento específico. Assim, a linguagem gestual, bem como a disponibilização de folhetos com informação relevante, em braille, que possam ser facultadas a pessoas cegas que necessitem de auxílio é também recomendada.
Estes são aspetos por vezes negligenciados, no entanto, no que toca a acesso a cuidados de saúde é fundamental que sejam inclusivos e que o profissional consiga comunicar para poder tranquilizar as vítimas e compreender como melhor as apoiar.
· Abuso e Dependência de Substâncias
Atualmente, o consumo de álcool, tabaco e outras substâncias psicoativas é elevado em muitos países, sendo responsável pela morte de perto de 8 milhões de pessoas por ano. Efetivamente, este seria por si só um problema de saúde pública, no entanto, em contexto de crise, o acesso a substâncias psicoativas ou outras fica mais limitado, contribuindo a privação para o aumento da violência e da criminalidade, representando mais um obstáculo ao sucesso da gestão da crise.
· Doenças Infeciosas
Surtos podem ocorrer de forma inesperada e num curto espaço de tempo, sendo a pandemia de COVID-19 exemplo da importância da preparação e da resposta rápida às ameaças microbiológicas emergentes. Tendo em conta o atual contexto ambiental e social, o risco de surtos provocados por doenças transmitidas pela água e vetores aumentou substancialmente em todo o mundo.
Em contexto de crise, os sistemas de vigilância epidemiológica, bem como as infraestruturas laboratoriais nacionais ficam, por vezes, inoperacionais, representando um desafio sério para a deteção de surtos. A inclusão de epidemiologistas nas equipas de gestão de crise, bem como a célere disponibilização de vacinas à população mostra-se fundamental, um ponto que exige articulação com os países vizinhos.
· Subnutrição e Segurança Alimentar
Atualmente, 2,36 mil milhões de pessoas encontram-se subnutridas, o que corresponde a 29% da população mundial. A subnutrição e a insegurança alimentar, bem como o limitado acesso a água potável e a condições de higiene básicas representam um grave problema em muitos países. Apenas no Sudão, com base num relatório recente da OMS, mais de 3 milhões de crianças com menos de 5 anos apresentam grave subnutrição, sendo que 100 000 necessitam de cuidados médicos urgentes. [3] A insegurança alimentar diz respeito não só à escassez, mas também à contaminação de culturas e alimentos, que será abordada mais à frente no tópico bioterrorismo.
· Saúde Sexual e Reprodutiva
No que diz respeito à saúde pública em contexto de catástrofe, as limitações no funcionamento regular das maternidades, colocam em risco a vida de mães e recém-nascidos. Por outro lado, a violência de género, em particular a violência sexual, é cada vez mais relatada, principalmente contra pessoas refugiadas. Assegurar cuidados médicos pós-violação, bem como apoio psicológico a estas vítimas é crucial.
· Poluição ambiental
A poluição ambiental pode ter diversas origens em contexto de crise: situações acidentais, libertação criminosa e voluntária de poluentes, e as resultantes de conflitos armados. Independentemente da sua causa, os efeitos na saúde das populações são graves e de longo prazo. A atual situação na Ucrânia é um exemplo da exposição a contaminantes resultante dos ataques, explosões e incêndios subsequentes e que necessariamente se traduzirá num aumento da necessidade de cuidados de saúde das pessoas expostas.
· Cancro
Em contexto de catástrofe, a realização de exames e deteção precoce, bem como o tratamento de doenças crónicas ficam limitados. Tais atrasos no diagnóstico e tratamento contribuem para a elevada taxa de mortalidade associada ao cancro. Da mesma forma, com o aumento da exposição a contaminantes, aumentará, igualmente, a incidência de doenças oncológicas na população exposta, traduzida em graves consequências para a saúde das populações.
· Alterações Climáticas
Os efeitos do aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos impõem desafios adicionais para os sistemas de saúde. Na gestão de catástrofes destaca-se, particularmente, um fator que se tornou mais frequente: a temperatura elevada. Esta situação torna logisticamente desafiante a prestação de cuidados de saúde. Por exemplo, a necessidade crescente de recurso a ar condicionado e sistemas de ventilação, o esgotamento por calor dos profissionais, um número elevado de golpes de calor e outras complicações de saúde associadas ao calor. Crítico é, também, o sobreaquecimento e potencial para causar incêndios de equipamento médico não projetado para funcionar com temperaturas de, por exemplo, 52ºC, como ocorreu recentemente na China. [4]
A ventilação e a refrigeração dos espaços terão de ser parâmetros a ter em conta no planeamento e gestão de crises.
Neste domínio, a engenharia de materiais emerge como uma aliada fundamental na procura de soluções que fortaleçam a resiliência das comunidades afetadas. Desde a deteção rápida de agentes patogénicos através de nanosensores, passando pela produção de membranas para filtração de água e ar, minimizando a contaminação e disseminação de doenças por essa via, até ao aumento do valor nutricional de farinhas alimentares, através da encapsulação de nutrientes, vitaminas e minerais, muito vastas são as aplicações da nanotecnologia à saúde pública. O mesmo sucede com a monitorização ambiental como a utilização de nanodispositivos para monitorização da presença de substâncias tóxicas, da qualidade do ar, entre outras. Em contexto de cuidados médicos, a impressão 3D pode permitir a produção local de peças para reparação de equipamento danificado e/ou peças de reposição em situações de crise.
No entanto, realisticamente, esta inovação tecnológica apresenta elevados custos, sendo que somente alinhada com as reais necessidades das populações afetadas, permitirá encontrar soluções efetivas que contemplem aspetos como o custo de produção e transporte, acessibilidade e, sempre que possível também o seu impacto ambiental.
· Diabetes
Em situações de acesso a cuidados de saúde precários ou limitados, a sintomatologia de doenças crónicas tende a aumentar, agravando-se casos que se encontravam controlados, medicados e com regular monitorização. Por um lado, a escassez de medicamentos, por outro a diminuição da qualidade da dieta alimentar e a regulação do sono. Assim, tal como sucede com as doenças cardíacas e pulmonares crónicas, renais ou infeções crónicas, também a diabetes se agrava em contextos de catástrofe.
O caso ZAPORÍJIA e a promoção da resiliência comunitária
Desde o início da guerra na Ucrânia que a zona de Zaporíjia, onde se insere a maior central nuclear da Europa, tem suscitado preocupação. De facto, conflitos armados nas proximidades de centrais nucleares exigem cautela e preparação para os diferentes cenários possíveis, considerando aspetos como a evacuação, gestão das pessoas expostas e procedimentos de descontaminação.
Como resultado direto da exposição a radiação, a síndrome de radiação aguda é um dos primeiros que requer cuidados de saúde. A médio e longo prazo, o surgimento de doenças oncológicas, em particular leucemia e cancro da tiroide, bem como efeitos genéticos e reprodutivos, causadores de infertilidade e anomalias genéticas nas futuras gerações são áreas da saúde que necessitaram de cuidados e alocação de recursos. Por outro lado, a nível psicológico, a incerteza quanto a consequências futuras de quem foi exposto, conduz a quadros graves de ansiedade e sofrimento psicológico.
Uma catástrofe nuclear é, provavelmente, uma das piores situações que uma equipa de intervenção em crises pode enfrentar.
No entanto, no contexto ucraniano, os riscos não se resumem à questão da central nuclear, os riscos englobam os 4 fatores NRBQ(N = Nuclear; R = Radiológica; B = Biológica; Q = Química), sendo de destacar o apelo da OMS para que a Ucrânia destrua os agentes patogénicos que tenha em laboratórios de investigação no seu território, por uma questão de segurança biológica para evitar a disseminação em caso de ataque. Cada vez mais, laboratórios e centros de investigação são vistos como alvo de interesse em contexto de conflitos. [5]
Por outro lado, outros tipos de catástrofes são cada vez mais frequentes e causam graves prejuízos e sofrimento às populações. Se, por um lado, num cenário de holocausto nuclear é compreensível a total impotência da maioria dos cidadãos para o enfrentar, outras situações poderão ser mais facilmente geridas e vividas com menor sofrimento por parte da população, caso a literacia e capacitação para este tipo de evento seja maior. Não se trata de responsabilizar ou culpar as vítimas por não saberem atuar ou aumentarem a sua vitimização. Trata-se, efetivamente, de contribuir para a construção de uma comunidade mais resiliente e funcional.
Falamos, então, de capacitação comunitária para resposta a desastres.
Estes últimos anos têm revelado uma mudança de paradigma climático. As ondas de calor, incêndios, secas extremas, precipitações intensas e consequentes cheias, têm sido mais frequentes e de complexa gestão. Face a este novo contexto a sensibilização e capacitação da população para se preparar e agir neste tipo de situação (o que devem ter sempre consigo, kits básicos de sobrevivência e primeiros socorros, procedimentos de segurança, etc.) deverá ser também uma competência e área de atuação dos gestores de catástrofes. Este trabalho a montante facilitará muito o caminho, bem como aumentará a probabilidade de sucesso, poupando vidas, sofrimento e recursos.
O futuro da biossegurança e o bioterrorismo
O bioterrorismo não se resume à disseminação intencional de agentes biológicos. Vai muito para além do Antrax e dos filmes apocalípticos sobre hipotéticas disseminações de vírus letais. Na verdade, os avanços das últimas duas décadas no domínio da biotecnologia vieram revolucionar muitas áreas, em particular a da saúde.
De facto, a pandemia de COVID-19 foi um marco deste século e poderá estar a funcionar como inspiração e referência para que grupos terroristas aumentem o seu investimento nesta área. A principal diferença entre os anos 90 e o início do milénio, tempo em que a Al-Qaeda recrutava biólogos e fazia formações para a produção de armamento biológico, reside no facto de, atualmente, o acesso a ferramentas avançadas de biotecnologia e, em particular, de engenharia genética, ser muito mais barato, simples e exigir uma reduzida expertise para as operar. [6]
Os laboratórios de investigação tornaram-se alvo de interesse, pelo que a formação de técnicos e investigadores deste tipo de instituição/infraestrutura deverão fortalecer protocolos de segurança e saber como atuar em caso de conflito ou catástrofe, bem como, nos seus procedimentos quotidianos minimizar a possibilidade de fugas de informação sensível, como por exemplo, sequências genéticas, bem como acesso a reagentes e microorganismos. Assiste-se, assim, a uma tendência de crescimento do biohacking, em simultâneo com uma maior facilidade de acesso a recursos biotecnológicos, com potencial uso para fins maliciosos.
Para além das redes de transportes que são um alvo primordial para ataques bioterroristas, o setor alimentar é, cada vez mais, um alvo do bioterrorismo contemporâneo. Desde a inserção de contaminantes nos circuitos de rega, até à disseminação de fungos, bactérias e vírus que afetam plantas e causam por um lado prejuízos económicos e por outra doença na população que ingerir esses alimentos, múltiplas são as novas tendências neste domínio, tendo potencial para enormes prejuízos sociais e económicos.
É expectável que ataques bioterroristas se tornem mais comuns nos próximos anos, sendo necessária a implementação de medidas por parte dos estados neste domínio, para mitigar os riscos sem comprometer a investigação científica neste campo.
Em resumo, aqui fica esta reflexão sobre pontos críticos para a saúde pública, sem intuito alarmista, mas como alerta para os perigos reais, necessidades e oportunidades para quem se dedica ou se interessa pelo campo da Gestão de Catástrofes. Estes e outros temas de saúde pública em contexto humanitário serão, brevemente, aprofundados no âmbito do Post Master em Gestão de Catástrofes e Crises Humanitárias.
Referências
[1] Top 10 public health challenges to track in 2023: Shifting focus beyond a global pandemic. Lucero-Prisno et al. (2023) Public Health Challenges. Wiley. 2023;2:e86. DOI: 10.1002/puh2.86
[2] Why the humanitarian sector needs to make cybersecurity a priority. Davos Agenda 2022. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2022/01/why-humanitarian-sector-cybersecurity-a-priority/
[3] WHO emergency appeal: Sudan and neighbouring countries: Jun – Dec 2023
[4] Calor extremo: China regista 52,2 graus Celsius e quebra mais um recorde. in Azul, Jornal Público 17.07.2023. Disponível em: https://www.publico.pt/2023/07/17/azul/noticia/calor-extremo-china-regista-522-graus-celsius-quebra-recorde-2057082
[5] WHO says it advised Ukraine to destroy pathogens in health labs to prevent disease spread. Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/exclusive-who-says-it-advised-ukraine-destroy-pathogens-health-labs-prevent-2022-03-11/
[6] Facing the future of bioterrorism. Atlantic Council. 2021. Disponível em:
https://www.atlanticcouncil.org/commentary/article/facing-the-future-of-bioterrorism/