en-CONFLITOS A DECORRER EM 2022 QUE NÃO PODEM FICAR ESQUECIDOS por Ana Paula Nunes

Ana Paula Nunes é Enfermeira, Licenciada em Psicologia, Doutorada em Bioética, Docente Universitária e aluna da ISO-SEC em muitas formações das quais destacamos o Post-Master em Gestão de Catástrofes e Crises Humanitárias.
Há conflitos, batalhas e guerras que têm uma extensa cobertura mediática, que são noticiados, divulgados, e que, assim, geram uma onda global de solidariedade, de simpatia, e, também, de ajuda, de auxílio e ação em relação às suas vitimas.
Da mesma forma com essa cobertura mediática esses conflitos são, de algum modo, escrutinados, "fiscalizados" e os seus atos mais hediondos, os seus crimes mais desumanos, são amplamente denunciados e expostos.
Mas há todo um conjunto de conflitos que, pelas mais diversas razões, não são noticiados, não têm cobertura mediática, ficam na sombra do esquecimento, deixando as suas vítimas num escuro abandono, sem ajuda, sem auxílio, sem defesa, sem esperança.
São estes conflitos que são expostos, inumerados e explicados em mais um artigo brilhante da ANA PAULA NUNES.
Um documento de referência e de leitura obrigatória!
CONFLITOS A DECORRER EM 2022 QUE NÃO PODEM FICAR ESQUECIDOS
Por: Ana Paula Nunes
A guerra na Ucrânia, tem mobilizado de uma forma nunca vista a solidariedade internacional, essencialmente, porque os órgãos de comunicação social do mundo inteiro, têm feito uma cobertura da guerra em direto e ao minuto, pelo que se tem gerado uma importante e merecedora ajuda humanitária. Acreditamos que o conflito da Ucrânia terá um impacto geopolítico muito significativo no presente e no futuro, por ser uma guerra ilegal, por ser um ataque à soberania de um pais, violando todas as convenções e tratados, e por esse motivo, constitui-se como um perigo para a segurança internacional. A invasão russa infligiu uma ferida mortal no complexo relacionamento político entre países, que as últimas gerações desconheciam e veio mostrar que provavelmente, na política internacional, a lei da força passará a fazer parte das estratégias, e por isso, a guerra será feita sem regras. A guerra na Ucrânia veio evidenciar que em pleno século XXI, a política internacional também pode ser feita, a partir da conquista territorial, do desrespeito pelas fronteiras e uma forma de exercício do poder, que ficará provavelmente impune. O respeito pelas leis da guerra, consagradas nas Convenções de Genebra, nos Protocolos Adicionais e no Direito Internacional Humanitário, são fundamentais, porque vêm marcar a essência de um mundo civilizado, que respeita a autodeterminação cultural e política dos povos, que defende a paz e a segurança, com o grande objetivo da defesa do princípio da humanidade. O povo ucraniano para além de ser vítima de uma guerra que não tem qualquer tipo de justificação, está a viver uma crise humanitária, com milhões de pessoas deslocadas, milhares de mortos, pessoas sem acesso a bens básicos e a viver o medo do que ainda está para vir. Independentemente do respeito que todos devemos sentir por aqueles que vivem a guerra de perto, é possível que a crise humanitária na Ucrânia, não esteja ao nível da catástrofe de outros países também em conflito. E por este motivo, para que possa haver justiça, temos que voltar a falar e a colocar sob os holofotes do mundo, outros conflitos que estão a acontecer exatamente ao mesmo tempo que o conflito na Ucrânia. Temos que falar dos conflitos onde quase já não há jornalistas, onde as Organizações Não Governamentais estão à beira da rutura pelo reduzido número de operacionais, onde as doações já não chegam e onde parece que estão todos a desistir. Não importa onde esteja a decorrer o conflito, porque o que verdadeiramente importa, é que cada vida vale por si própria, e merece defesa e proteção.
Tendo em conta que a situação das pessoas que estão a viver conflitos armados um pouco por todo mundo, não é tratada pela comunicação social da mesma forma, cabe a nós, não permitir que sejam esquecidas. À semelhança da Ucrânia, as vítimas desses conflitos armados são múltiplas, os motivos dos conflitos variados, e também nenhum é justificável ou aceitável.
HAITI
Depois do assassinato do auto-proclamado presidente Jovenel Moise, em julho de 2021, o país vive uma escalada de violência entre gangues, mercenários e inúmeros sequestros de civis. A violência incluiu massacres executados com catanas em algumas comunidades, violações e assassinato de crianças, que segundo uma investigação da ONU, foi planeado por ministros do governo. Em abril de 2022, os conflitos intensificaram-se com um número incontável de civis mortos e feridos com balas. Os hospitais não conseguem atender todos os feridos e as barricadas nas ruas impedem a circulação de ambulâncias. Para além da crise quase permanente que tem caraterizado a história política do Haiti, o país tem sido vítima de várias catástrofes naturais. Destacamos o sismo de 2010, que fez mais de 250 mil mortos e com regiões ainda em processo de reconstrução; o furação Matthew em 2016, com mais de 900 mortos, 30 mil pessoas em abrigos improvisados e 10 mil sem qualquer tipo de abrigo; e, o sismo de 2021, que afetou 800 mil pessoas, provocou 2 200 mortes e 12 700 feridos. Esta última situação desencadeou uma crise humanitária superior à causada pelo sismo de 2010. O acumular de catástrofes naturais e os conflitos armados no Haiti, colocam-no em 170º lugar nos níveis de pobreza, de uma lista de 189 países, sendo que cerca de 46% da população, o que equivale a 4,9 milhões de pessoas, precisam de ajuda humanitária. A taxa de insegurança alimentar é de 48% e continua a aumentar. Não os podemos esquecer.
SIRIA
No decurso da Primavera Árabe, o presidente da Síria, Bashar al-Assad, foi alvo de contestações que começaram por ser pacíficas, mas que rapidamente se transformaram numa guerra civil que dura até hoje. O nascimento e o crescimento de grupos rebeldes, pró ou contra o presidente sírio, patrocinados por países como a Rússia, os Estados Unidos da América, a França e o Reino Unido, fizeram 500 mil mortos, 2 milhões de feridos, 200 mil pessoas desaparecidas e mais de 10 milhões de deslocados. Em 2022, a escala de violência tem provocado cada vez mais mortes em crianças e os ataques aos serviços de abastecimento de água têm sido usados como "arma de guerra", prejudicando cerca de 250 mil pessoas. Com uma taxa de inflação de 140% e cerca de 90% da população síria a viver num extremo estado de pobreza, a Síria vive uma das mais graves crises humanitárias do planeta. Segundo o presidente da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Síria, há milhares de crianças em acampamento de detenção a viver em condições "deploráveis e desumanas", sem alimentos e higiene adequados, sem apoio psicológico e educação. A insegurança nos campos de refugiados põe em causa a vida de milhares de pessoas, incluindo a dos profissionais humanitários, que se tornaram alvos privilegiados do autoproclamado Estado Islâmico. A Amnistia Internacional refere que há centenas de adolescentes com mais de 12 anos, retirados às famílias, detidos arbitrariamente em prisões, onde escasseia alimentos, água e cuidados de saúde, expostos a casamentos forçados, tráfico humano e recrutamento para os combates. O campo de Al Hol, tem cerca de 73 mil pessoas, sendo 94% mulheres e crianças. A área do designado, anexo, tem cerca de 11 mil pessoas não sírias, sendo que 7 mil são crianças, que para além de terem mais restrições de movimentos, têm menos acesso a bens de primeira necessidade. A Síria tinha 14,6 milhões de pessoas dependentes da ajuda humanitária, mas a guerra na Ucrânia piorou o que já era inaceitável. Não os podemos esquecer.
MIANMAR
Tensões políticas e étnicas têm caraterizado Mianmar, mas os conflitos agravaram-se e intensificaram-se em fevereiro de 2021, quando o exército assumiu o comando do país através de um golpe de estado, depois das eleições onde a líder Aung San Suu Kyi, venceu. Os partidos da oposição incitaram à desobediência civil que rapidamente se transformou numa guerra civil, tendo morrido até agora mais de 10 mil pessoas, obrigando a deslocações para fugir do conflito cerca de 220 mil pessoas, e havendo 25% da população a necessitar de algum tipo de ajuda humanitária. O desrespeito pelos direitos humanos fazem-se sentir essencialmente, na perseguição ao povo Rohingya. Com origem em Rakhine no Norte de Myanmar, os Rohingya são uma das minorias étnicas e religiosas muçulmanas, com idioma próprio, mais marginalizadas e discriminadas pelo estado e pela população do país. Segundo a ONU, os Rohingya são um dos povos mais perseguidos do mundo, onde mais de 800 mil pessoas, não têm nação, terra, direitos ou cidadania. Não os podemos esquecer.
ETIÓPIA - REGIÃO DE TIGRAY
O conflito entre diferentes etnias que dura há quase três décadas, foi agravado em novembro de 2020 após as eleições regionais, onde Abiy Ahmed, primeiro ministro e detentor do prémio Nobel da Paz em 2019, considerou as eleições fraudulentas. Sendo a zona de Tigray a que tem assistido aos piores conflitos internos, há uma preocupação constante, uma vez que se corre o risco de estes conflitos se alastrarem à Eritreia, com quem têm uma disputa territorial de longa data. Sendo o segundo país com maior densidade populacional do continente africano, a Etiópia não está a ter o apoio que necessita, porque a ajuda humanitária não consegue chegar às várias regiões do país devido à destruição de infraestruturas críticas, a problemas nas comunicações, à falta de energia e à ausência de voos, para além de haver um impedimento direto da passagem dos trabalhadores humanitários, o que faz da fome uma "arma de guerra". Segundo a ONU, já morreram dezenas de milhares de pessoas, há milhões de deslocados e cerca de 400 mil estão em risco de fome extrema. Apesar deste cenário, em janeiro de 2022, os responsáveis pelo Programa Mundial de Alimentos, informaram que não há financiamento para enviar bens alimentares para a Etiópia. Segundo a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, o conflito na região de Tigray na Etiópia, reveste-se de particular crueldade e brutalidade, havendo provas de inúmeros crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, de acordo com o Direito Internacional Humanitário, perpetrados por ambos os lados. Para além dos conflitos, a seca severa na Etiópia tem arrastado para a fome muitos milhares de pessoas, mas também de animais, que são a base de sustentação das comunidades nómadas. Não os podemos esquecer.
IÉMEN
Em 2011, o Iémen sofreu uma revolução durante a "Primavera Árabe", cujo objetivo foi terminar com um regime ditatorial e corrupto, liderado pelo presidente Ali Abdullah Saleh durante 23 anos. Desde 2014 o país vive numa violenta guerra civil.
A guerra civil opõe muçulmanos xiitas do grupo considerado rebelde, os houthit, e por forças governamentais muçulmanos sunitas, comandadas do exílio na Arábia Saudita, pelo atual presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi. Este conflito tem sido gradualmente agravado, uma vez que cada um dos lados tem o apoio de dois países, a Arábia Saudita que apoia o atual presidente e o Irão que apoio os rebeldes houthit. Segundo a ONU, esta conflito já provocou mais de 230 mil mortes, entre as vítimas diretas da guerra, as vítimas da fome e dos problemas de saúde. Este conflito continua ativo, tendo-se registado no mês de fevereiro de 2022, mais de 700 bombardeamentos aéreos, que tem transformado este pais na pior crise humanitária do mundo, com milhares de pessoas a morrer com fome.
O Iémen tem uma população de cerca de 30,5 milhões de pessoas, onde 80% precisam de assistência humanitária urgente, 67% não têm acesso a água potável, 66% não têm acesso a alimentos e 11% estão subnutridas. Dos 7,4 milhões de pessoas em situação de desnutrição, mais de 1 milhão são mulheres grávidas ou a amamentar e mais de 2 milhões são crianças com menos de 5 anos. Qualquer doença tratável é uma sentença de morte no Iémen, uma vez que não há estruturas hospitalares e serviços de cuidados de saúde primários que possam prestar assistência, para além de que há apenas 10 profissionais de saúde para cada 10 mil pessoas. Cerca de 10,8% das pessoas que fugiram do conflito, mantêm-se fora do seu local de habitação e mais de 16% das crianças não tem qualquer apoio escolar desde o início do conflito, porque as escolas foram destruídas ou porque foram ocupadas por rebeldes ou porque servem de apoio a pessoas em fuga. O desrespeito pelo Direito Internacional Humanitário é permanente, tendo ambos os lados cometido crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Em 2022, todas as organizações de ajuda humanitária, referem que a crise no Iémen está a piorar, porque a associar aos conflitos, há o impacto das alterações climáticas e dois anos de pandemia por COVID-19. Não os podemos esquecer.
Para além dos conflitos já descriminados, não podemos esquecer as vitimas: da República Centro Africana, que está mergulhada numa guerra civil à mais de uma década; da Nigéria, onde grupos terroristas fazem centenas de mortos; da Líbia, que vive em conflitos desde 2011, altura em que o regime de Kadafi caiu; em Israel, onde os conflitos com a Palestina existem desde 1947 e continuam sem tréguas; na região de Caxemira, onde a Índia, o Paquistão e a China, têm a sua cota parte de interesses, mas com disputas territoriais violentas essencialmente, entre a India e o Paquistão; na República Democrática do Congo, onde a paz teima em não chegar; no Sudão do Sul, o mais jovem pais do mundo, que tem vivido situações de violência extrema; na Turquia e no Curdistão, com o conflito a provocar mais de 40 mil mortes; na Somália, onde grupos terroristas atacam militares, civis e estruturas organizacionais; no Mali, que soma conflitos e golpes de estado; em Nagorno-Karabakh, território disputado entre o Azerbaijão e a Arménia, que mostra como a geopolítica tem graves consequências para as populações civis; na região de Cabo Delgado, em Moçambique, onde o Daesh continua a provocar terror; e, no Afeganistão, onde se vive um retrocesso civilizacional nos direitos humanos, que empurra essencialmente as mulheres, para épocas pré-históricas.
A geopolítica destas regiões está mais do que nunca a expandir e com influência em áreas geográficas muito distantes. O elo de ligação dos conflitos em todos estes países, é a fome, as crises humanitárias, o desrespeito pelos Direitos Humanos e o desrespeito pelo Direito Internacional Humanitário. Devido à guerra na Ucrânia, a ameaça do aumento do número de pessoas em situação de insegurança alimentar e com fome, já existente há muito tempo e agravada pela pandemia, está a concretizar-se. Estima-se que 320 milhões de pessoas distribuídas por 43 países, muitas, vítimas dos seus próprios conflitos, venham a ser vítimas de uma guerra longínqua, que impediu as exportações de cereais para países completamente dependentes dos celeiros ucranianos. A guerra provocada pela invasão russa, está a levar à retenção dos cereais nos portos, ao impedimento do cultivo de novas searas, a dificuldades no transporte e no acesso aos alimentos, à destruição dos solos férteis devido à presença de material tóxico dos explosivos usados nos bombardeamentos. Estas situações levarão à fome, à pobreza e à morte milhões de pessoas, muito para além das zonas de combate.
A ausência de jornalistas, a propaganda da desinformação e a falta de informação acerca da realidade destes conflitos, faz com que a comunidade internacional não tenha conhecimento do que verdadeiramente se está a passar. E se não há divulgação nas televisões e nos jornais, não há patrocínios, não há voluntários e não há bens doados, e consequentemente, não há ajuda, não há proteção para os mais vulneráveis, não há defesa dos direitos humanos básicos e não há possibilidade de proteger a vida.
É imperioso falarmos destes povos e dos conflitos que lhes tiram a vida, a paz, a segurança e os alimentos. O silêncio sobre o que está a acontecer a estes povos é angustiante. Não podemos continuar cúmplices da ausência de relatos e de notícias sobre estas crises humanitárias. Estes povos nunca saberão que há pessoas que querem continuar a falar deles para que a ajuda humanitária possa chegar, mas nós sabemos que temos que o fazer, porque não podemos permitir que sejam esquecidos.