en-TENHO UM CÃO CAPAZ DE ENCONTRAR PESSOAS “DESAPARECIDAS”:   Já posso ir para áreas de operações? por Filipe Fonseca

14/09/2022

Formado em Cuidados Veterinários pelo Instituto Politécnico de Bragança

Proprietário, treinador e formador do centro canino Canisupreme

Conta com mais de 19 anos de experiência na canicultura, tendo formação nas mais variadas vertentes (Exposições, desportos caninos, guarda e segurança, detecção de substâncias, busca e salvamento...)

Gere uma equipa de binómios caninos de busca e salvamento e faz a preparação de guias e canideos para essa mesma função.

Ministra formação na área da canicultura e da busca e salvamento com recurso a canideos.

Nos últimos anos, o aparecimento de VOADs (Voluntary Organizations Active in Disaster), isto é, organizações de voluntários ativas em desastres, tem aumentado exponencialmente.

E ainda bem!

Quando o pior acontece todos temos de ser úteis!

No entanto, a vontade de fazer não se pode sobrepor à capacidade de fazer e de fazer bem, porque o que importa é ajudar e nunca o contrário.

E, para conseguir ajudar é preciso saber, ter treino, ter experiência, ter conhecimento.

Filipe Fonseca faz, neste texto, uma breve abordagem a um dos muitos aspetos da intervenção em desastres, a busca com canídeos, em contexto de emergência e catástrofe, brevemente uma área de formação da ISO-SEC.

TENHO UM CÃO CAPAZ DE ENCONTRAR PESSOAS "DESAPARECIDAS": 

 Já posso ir para áreas de operações?

Por: Filipe Fonseca

A pergunta parece descabida, mas é um retrato fiel da leveza com que esta área ainda está a ser encarada. Vamos por partes...

Ninguém pode (ou deveria) estar presente em teatros de operações com canídeos sem aprovação nas provas específicas para a finalidade, sejam elas as provas nacionais ou as de regulamento internacional. São estas provas que testam a aptidão do canídeo nas mais diversas vertentes (obediência, agilidade, destreza, coragem, capacidade de busca, etc). Qualquer binómio, que leve esta área a sério, não deve ter medo destas provas, elas são necessárias para a demonstração, reconhecimento e validação do vosso trabalho, por parte das autoridades, que andarão lado a lado no terreno convosco.

Mas, não complicando, e ignorando a questão legal da área, nenhum cão está a "trabalhar" sozinho numa AO. O guia e o cão são uma equipa que tem que trabalhar numa constante simbiose, fala-se por isso em binómio de busca e salvamento. Há uma analogia que uso bastante nos treinos de preparação para estas funções, "ter um cão preparado e um guia incapaz, é como ter um Ferrari em casa e não saber conduzir".

Indo um pouco mais atrás... Qual é afinal o trabalho de um binómio de busca e salvamento?
O Binómio (equipa guia + cão) tem como objetivo localizar a(s) pessoa(s) desaparecida(s) através do odor da(s) mesma(s).


Todos nós libertamos cerca de 50 milhões de células epiteliais por dia, essas células em conjunto com outros compostos orgânicos voláteis constituem o odor humano.
A função do cão é encontrar esse odor (o da pessoa desaparecida) enquanto "descarta" todos os outros odores (humanos e ambientais) presentes naquele mesmo local. Quando finalmente encontra o odor da vítima, vai seguir o rasto daquelas partículas até chegar ao local onde esta se encontra. Quando se encontra perto da vítima, tipicamente o cão irá latir para indicar que a vítima ali está. Parece simples certo?

O que acontece nesta área é que o foco está quase inteiramente no canídeo e esquece-se o guia. Há inúmeras formações de como treinar cães para esta função, como preparar figurantes para esta função, mas, e os guias???

As equipas esquecem-se de fazer treinos vocacionados para "enriquecer" o guia. Falham em explicar aos membros mais iniciados que eles e o seu cão terão de ser um só, quer em treino quer numa situação real. Não pensam tão pouco em trabalhar a ligação entre o guia e o cão antes de iniciar verdadeiramente o treino de busca. Sem uma excelente relação do binómio, a excelência nunca pode ser alcançada. O guia tem que saber interpretar tudo que o seu cão lhe transmite. A título de exemplo, a cadela mais experiente da nossa equipa começa a ganir quando já localizou o odor da vítima, mas, ainda não consegue precisar onde, por outro lado a neta dela muda por completo o movimento da cauda, para um movimento estilo "helicóptero" quando está na mesma situação.

Perceber o próprio cão parece uma tarefa árdua, mas óbvia para o desempenho da função. A questão é que para o guia perceber o cão tem antes que perceber a ciência dos odores, tem que perceber que o odor se movimenta de uma forma diferente consoante a temperatura, as superfícies, a humidade, a exposição solar, etc. Nós, guias, temos que ser capazes de "ver" as correntes de odor e interligar essa leitura com as informações que o cão nos está constantemente a fornecer. Ser guia K9 é muito mais que soltar um cão e esperar até que ele ladre, caso contrário qualquer um o faria. Ser guia K9 é ter conhecimentos científicos, técnicos e acima de tudo psicológicos para o desempenho da função.

Inevitavelmente, quando começamos a formação do guia e do canídeo em simultâneo, iremos ter o cão mais rapidamente preparado para situações reais do que o guia. Torna-se aliás contraproducente fazê-lo, pelo risco de prejudicar a solidez de treino do canídeo com erros resultantes da inexperiência.

Formar um cão para busca e salvamento (na maioria das vezes) é um trabalho de meses, formar um guia é algumas vezes uma questão de anos. Então, aposte-se na formação destes elementos mesmo antes de trabalharem com cão, para que depois, seja sim uma questão de meses e os possamos ter no terreno no seu melhor!