JMJ LISBOA 2023: UMA ODISSEIA INSPIRADORA por Manuela Pimenta

12-09-2023

Manuela Pimenta é Licenciada em Ciências Farmacêuticas e Mestre em Análises Clínicas. É especialista em Farmácia Comunitária e em Análises Clínicas e Genética Humana pela Ordem dos Farmacêuticos. Diretora técnica da Farmácia de S. João em Ponte de Lima. Farmacêutica Humanitária, somando já várias Missões de capacitação a nível de saúde comunitária e diagnóstico laboratorial na Guiné-Bissau, nomeadamente no Hospital Pediátrico de S. José em Bôr. Sobre esta temática tem sido convidada para falar em vários ciclos de conferências.

"Maria levantou-se e partiu apressadamente" era o lema da JMJ Lisboa 2023.

Foi exatamente o que eu fiz.

Eu e os mais de 25 mil voluntários que se inscreveram sem pestanejar e com o forte ímpeto de SERVIR.

Todos tivemos formação intensiva nos meses que antecederam a Jornada e todos tínhamos uma função e um grupo de trabalho bem definido. Desistir não era opção.

Durante a primeira semana de Agosto, os eventos da Jornada encheram a cidade de luz, cor e música! Às t-shirts vermelhas e verdes dos peregrinos, juntavam-se as t-shirts amarelas dos voluntários, conhecidos, na gíria da JMJ Lisboa 2023, como Minions.

Esta onda de cor ganhava ainda mais vida com os estandartes de cada país a esvoaçarem ao vento, para cá e para lá. Nunca tinha visto tanta alegria junta! Tantos e tantos jovens felizes a caminhar em bando, orgulhosamente, atrás da sua bandeira! Muitas vezes os interpelei para perguntar "qual é teu país?" e ouvia, às vezes em coro, "Namíbia", "Guiné-Equatorial", "Polinésia Francesa", "Egipto". Também me recordo emocionada de um jovem nepalês a descer o relvado da Colina do Encontro no Parque Eduardo VII, aos pinotes, como se fosse uma gazela, dando-me um abraço de agradecimento pela hospitalidade portuguesa e pelo facto de se sentir em casa. E ainda aquele abraço gigante ao meu povo irmão guineense quando os encontrei a dançar música angolana no Marquês.

Pequenos instantes que deixavam o meu coração a transbordar de gratidão por saber que com o meu trabalho de voluntária estava a contribuir, ainda que indiretamente, para que estes jovens peregrinos pudessem usufruir da Jornada e da cidade que os recebeu de braços abertos.

Valia a pena todo o esforço, cansaço acumulado e acordar tão cedo todas as madrugadas.

Sempre que o meu turno de trabalho terminava, ia vê-los à Cidade da Alegria, aos Encontros Rise Up ou ao Festival da Juventude e beber um pouco daquela fé em estado puro, do êxtase da multiculturalidade e do companheirismo que caracterizava estes grupos tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão semelhantes. Que maravilhosas lições de resiliência, paciência e tolerância assisti!

Voltei a sentir-me adolescente quando me juntei aos jovens que se banhavam vestidos num fontanário em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, sob o olhar atento e nada reprovador de umas Irmãs religiosas ou quando a nossa equipa de voluntários da saúde, após horas e horas, dentro de uma garagem a organizar material médico, começou a dançar a coreografia do Jerusalema e a Macarena.

Recordo também o efeito inebriante e eletrizante que as palavras de ordem do Papa Francisco "TODOS, TODOS, TODOS" tiveram em mim e em todos os que estiveram na Cerimónia de Acolhimento.

A intensidade e simultaneamente a leveza de cada momento vivido irá acompanhar-me para sempre.

Talvez por toda a semana ter sido tão perfeita e magnética, eu tenha reagido com alguma indignação quando me apercebi das precárias condições destinadas a receber os peregrinos, nos Setores B, C e D no Campo da Graça, no Parque Tejo, onde decorreram a Vigília e a Missa de Envio.

Tão, mas tão diferentes das condições do Setor A.

Com o Campo da Graça ainda vazio, dava para perceber que o rio Trancão não separava apenas dois concelhos (Lisboa e Loures), mas separava também dois mundos, ainda que ligados por uma ponte pedonal, com acesso fortemente condicionado.

Cheguei cedo ao Campo da Graça, num shuttle de voluntários da saúde que iriam iniciar o turno logo pela manhã. As nossa equipas estavam incumbidas de apetrechar as tendas médicas e de percorrer os vários setores com um buggy elétrico distribuindo mochilas médicas, malas térmicas com medicamentos e fazer a reposição de material em falta.

Com o avançar das horas e o calor tórrido de um dia de verão (o IPMA decretou aviso vermelho nesse fim de semana, devido à persistência de valores extremamente elevados da temperatura máxima) começaram a chegar os primeiros peregrinos, após terem aguardado, nas vias de acesso em asfalto, algumas horas pela abertura das portas e de caminharem vários quilómetros até chegarem à entrada do Parque.

Desengane-se quem pensa que o calvário destes peregrinos terminou assim que chegaram ao Campo da Graça, porque inúmeros desafios e provações estavam apenas a começar.

Refiro-me à exposição ao calor extremo, à inexistência de sombras, a um terreno árido onde iriam pernoitar, com terra muito seca e algumas pedras, a setores sobrelotados, à dificuldade em identificar a localização dos pontos de água, às filas intermináveis para os sanitários, à escassez alimentar (principalmente para os peregrinos que não recolheram os Kits de Alimentação nos pontos de recolha, todos eles fora do recinto), às zonas do recinto alagadas porque a terra não conseguia absorver mais água, aos corredores de acesso quase intransitáveis, à parca identificação dos vários locais importantes do recinto e à falta de placas informativas da localização de cada setor.

Perdi a conta à quantidade de jovens que encontrei perdidos no recinto, alguns desorientados, com dificuldades no acesso à comida ou para encher o cantil.

Na minha opinião, que vivi de perto toda esta experiência, muitas das ocorrências que aconteceram entre sexta (4 de agosto) e domingo (6) em que foram atendidos cerca de 1700 peregrinos e, destes, 94 tiveram de ser transportados ao hospital (1) poderiam ter sido prevenidas ou amenizadas consideravelmente com um planeamento mais cuidadoso das condições do recinto, bem como uma maior atenção às necessidades básicas dos participantes.

Deveriam ter preparado melhor o terreno, que deveria ser relvado e sem pedras soltas, o recinto deveria ter vários locais de descanso e mais sombras, haver aspersores de rega para baixar o pó do ar e refrescar o ambiente. Deveria haver muitos mais pontos de água potável canalizada e também mais locais destinados à lavagem das mãos, muitos mais sanitários dispostos ao redor dos setores, haver distribuição de kits de alimentação fora do recinto, mas haver também a possibilidade de os obter dentro do recinto e serem mais leves (4 Kg é um peso exagerado para quem já tem de transportar a mochila, colchão, saco-cama). Construir corredores de acesso muito mais largos para que os veículos de emergência possam circular sem constrangimentos. Haver placas de indicação e sinalização espalhadas pelo recinto e com altura suficiente para que fiquem sempre visíveis. Haver mapas do recinto, da distribuição dos setores, localização das tendas médicas e das portas de saída.

Fica a experiência, fica também a aprendizagem.

Apesar de todas estas provações que nos levaram ao limite, ficou a grande lição durante a magnífica alvorada do Padre Guilherme antes da Missa de Envio!

Foi um despertar inesquecível, que nem o sol quis perder o momento! Que cenário idílico! Todos, numa profunda comunhão, saltámos do chão, sacos-cama pelo ar e começámos a dançar aquela música eletrónica, como se não tivéssemos qualquer mazela do dia anterior! Renascemos com o nascer do sol.

Este é o verdadeiro milagre, o novo dia que nasce e que nos mostra que vale a pena aguentar estoicamente todas as adversidades, como um soldado, sempre firme. 


(1) https://www.dn.pt/sociedade/jornada-mundial-da-juventude-nao-trouxe-mais-casos-de-saude-publica-a-portugal-16869192.html

(2) https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/lisboa-conseguiu-acolher-o-mundo-as-memorias-dos-dois-momentos-mais-esperados-pelos-peregrinos