NÃO PERGUNTES POR QUEM OS SINOS DOBRAM... por Rui Alberto Silva

08-08-2022

Formador, escritor, investigador, Rui Alberto Silva é responsável pelos conteúdos didáticos e educacionais da ISO-SEC.

A morte recente do Líder da Al Qaeda Ayman Al-Zawahiri, levanta algumas questões e muitas considerações em relação ao real impacto deste acontecimento da luta anti-terrorismo e dos futuros rumos do combate a este flagelo global.

Rui Alberto Silva traça, neste texto, uma breve história da influencia de Ayman Al-Zawahiri no terrorismo global, do seu real (e nem sempre real) "contributo" global e de como a sua morte pode impactar o futuro de todos nós.


NÃO PERGUNTES POR QUEM OS SINOS DOBRAM...

Por: Rui Alberto Silva

A morte recente do líder da Al Qaeda, Ayman Al-Zawahiri, foi relegada, pelos órgãos de comunicação social e mesmo por muitos especialistas e comentadores, para segundo plano, para algo sem grande relevo noticioso e sem grande impacto no contexto das ações antiterroristas.

Foi com algum espanto que presenciei isso!

Não dar o devido relevo ao "abate" de Al-Zawahiri é algo de injusto para todos os que, todos dias, combatem o terrorismo e os seus agentes assim como nos alerta para um notório desinteresse e consequente desinvestimento no contraterrorismo global.

Mas, para entender a relevância da morte de Ayman Al-Zawahiri é necessário entender as origens mais profundas da Al Qaeda.

Em meados e finais dos anos 80, o radicalismo de inspiração islâmica tinha muitas causas e muitas "motivações": o conflito Palestiniano (consequência da criação do estado de Israel), os territórios ocupados da Faixa de Gaza, Sinai, Montes Golã e Cisjordânia (consequência da guerra dos 6 dias e da guerra do Yom Kippur), a invasão Soviética do Afeganistão, a crescente "ocidentalização" do mundo Árabe (nomeadamente os casos da Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes Unidos, que se tornaram, oficialmente, aliados do Reino Unido e Estados Unidos da América), eram todas causas que levavam os jovens islâmicos radicalizados à luta, a participar na Guerra Santa (Jihad), a ser combatente de deus (mujahidin) e aspirar a uma morte santa com as recompensas prometidas no Sagrado Corão pelo Profeta.

Mas o ímpeto juvenil pela Guerra Santa e a proliferação de "causas" dispersava o esforço, dispersava os meios, dispersava a focalização, especialmente em termos táticos e estratégicos, do combate.

Não seria possível, era mais do que óbvio, derrotar o Ocidente, grandes impérios como o Britânico e o Norte Americano, ou então grandes grupos de pressão e influência, como o sionista, com pequenos grupos dispersos, com meios fragmentados, com estratégias erráticas e, por vezes quase antagónicas.

As lições retiradas do ataque do grupo "Setembro Negro" aos Jogos Olímpicos de Munique em 1972 foram claras, notórias e incontestadas: uma ação mal planeada, mal preparada e mal executada pode ser um forte revés para a causa islâmica, tanto do ponto de vista operacional (mais de 20 importantes membros e líderes de grupos islâmicos mortos, tanto no ataque como na posterior missão "Ira Divina" desencadeada pelo Estado de Israel), como um verdeiro desastre em termos de "marketing" e "relações públicas" transmitindo uma imagem de histerismo, desorganização e incompetência.

Desta forma, tornou-se óbvio, nesta época, que era preciso uma base de entendimento, uma base estratégica que congregasse os diversos grupos radicais islâmicos numa frente comum, num objetivo único, uma base que conseguisse concentrar a força dispersa, tanto em termos materiais como humanos, de modo a fazer real dano aos "grandes satãs".

Dois jovens intelectuais de classes abastadas tiveram essa perceção: Osama Bin Laden e Ayman Al-Zawahiri. O primeiro um dos herdeiros da família mais rica e mais importante da Arábia Saudita logo depois da família Real. O outro, um jovem médico pediatra e cirurgião egípcio, oriundo da classe média alta. Dois jovens privilegiados, intelectuais, sem qualquer tipo de treino, experiência militar ou operacional, unicamente motivados pelo seu espírito (radical) islâmico e por uma vontade férrea que os impelia a expulsar o ocidente e sua influência do mundo árabe.

Convêm acrescentar que a sua falta de conhecimentos e experiência em termos militares e terroristas podia muito bem ser comparada à sua falta de conhecimento, preparação e experiência na teologia Islâmica ou nos estudos corânicos. Nenhum dos dois alguma vez foi mais longe nos estudos corânicos e na filosofia e teologia islâmica do que os básicos estudos de madraça quando eram novos. O islão, convenhamos, nunca foi a causa, foi sempre o meio, nunca foi a motivação, foi sempre a desculpa. Tanto Bin Laden como Al-Zawahiri nunca pregaram ou defenderam o Corão, defenderam e pregaram a visão que ELES tinham do Islão.

Mas, o que fica para a história dos factos é que estes dois jovens radicais entenderam a dispersão, a desorganização e o amadorismo dos movimentos radicais islâmicos e decidiram atuar criando uma base que fornece organização, planeamento, estrutura, dimensão.

E não estiveram com grandes criatividades ou preocupação de marketing e chamaram a essa base: A Base.

Em árabe: Al Qaeda.

A Al Qaeada deu ao movimento radical Islâmico uma estratégica e tática unificada; forneceu treinos e campos de treino onde, finalmente, os terroristas podiam, de facto, ter instrução digna desse nome; pela sua dimensão e pela seriedade conferida por um plano estratégico coerente e explícito, pode negociar diretamente com patrocinadores, apoiantes, desde empresas a Estados. Pôde, assim, obter mais fundos e, por exemplo, negociar diretamente com os traficantes de armas e explosivos a preços e condições competitivas e não depender de furtos, roubos, saques ou espólios de guerra para se armar. Também com essa dimensão pôde aceder aos mercados de divisas, seja legais ou ilegais, criando verdadeiros sistemas de branqueamento de capitais (chegaram a ter posições dominantes em vários bancos internacionais) o que permitia aos grupos terroristas criar as suas próprias fontes de receita tais como o narcotráfico, o tráfico humano, redes de prostituição, sequestro, etc, etc.

Mas, fundamentalmente, a dimensão e o "peso" da Al Qaeda, como base e rede organizada do movimento radical islâmico, permitiu-lhe negociar com as grandes potencias.

Num mundo ainda dividido entre os dois blocos, o ocidental liderado pelos Estados Unidos e pelo designado "Bloco de Leste" liderado pela União Soviética, partidos políticos, movimentos independentistas, grupos terroristas, revolucionários e até de criminosos podiam-se "candidatar-se" a ser apoiados por um dos blocos desde que demonstrassem vontade e capacidade de infligir dano ao Bloco contrário.

Tanto o KGB como a CIA tinham (têm?) contas bancárias bem "dotadas" para esse tipo de financiamento.

E foi isso que a Al Qaeda fez: opondo-se à invasão Soviética do Afeganistão e valendo-se da regra diplomática norte-americana que "o inimigo do meu inimigo é meu amigo" (regra que tem vindo a trazer grandes "amargos de boca" aos Estados Unidos ao longo da história), a Al Qaeda conseguiu da CIA centenas de milhões de dólares para financiar os movimentos radicais islâmicos assim como armas, treino e informações.

A Al Qaeda era a base que tudo congregava, tudo organizava, tudo dirigia e, os grupos que recorriam a essa base, obtinham sucessos atrás de sucessos: Os Talibãs conseguiram expulsar os Soviéticos do Afeganistão, Israel teve de devolver parte dos territórios ocupados, a OLP (Organização da Libertação da Palestina) conseguiu os acordos de Camp David, etc..

Na altura, ninguém conhecia a Al Qaeda nem, tão pouco os seus dois "cérebros", mas eles estavam na base de toda a geopolítica do Médio Oriente. Eles eram o "terrorismo silencioso" que, não aterrorizando as populações, faziam gelar de medo os Key Players da política internacional.

Afinal, de que vale amedrontar milhões se o medo de alguns tem, exatamente, o mesmo efeito e resultados mais rápidos, com menos esforço?

E assim foi até que o muro de Berlim caiu e com ele todo o Bloco de Leste e, com isso, o bipolarismo geopolítico.

Dispersou-se o inimigo, faltou o financiamento, faltou o interesse...

E milhares de corajosos jovens, desejosos por combater e dar a vida por Alláh ficaram sem missão, sem objetivo, sem propósito, sem nada.

E, além disso, muitas dezenas de dirigentes, Imãs, comandantes e líderes ficaram sem os seus movimentos e, logo, sem a sua base de sustento, não raras vezes, como se provou, um enorme sustento...

E, se o primeiro problema era sério, o segundo era insustentável e inadmissível.

Era preciso encontrar um novo inimigo, era preciso encontrar um novo propósito, era preciso encontrar um novo Alvo.

E é precisamente para resolver problemas que "A Base" existe.

Mas, desta vez, o plano era tão megalómano, tão gigante, tão incrível que a própria Base tinha de provar que era possível.

O Ocidente no geral e, os Estados Unidos em particular, o antigo financiador, seria o novo inimigo, seria "cortar a cabeça à serpente", abalar o ocidente pelas suas fundações.

Afinal, se se conseguisse atacar e infligir dano à maior potência do mundo a mensagem seria clara e inequívoca: ninguém estava a salvo dos radicais islâmicos!

A Al Qaeda, especialmente Al-Zawahiri, afirmava que era possível, Bin Laden duvidava, os restantes aguardavam.

E concretizou-se, como todos sabemos.

Primeiro, no ataque à Embaixada americana em Nairobi, Quénia, em 7 de agosto de 1998, depois à Embaixada americana em Dar es Salaam, Tanzânia, também em 7 de agosto de 1998. Testou-se a capacidade, mas não se atingiu o mediatismo.

Foi, precisamente com o ataque ao Bombardeiro USS Cole, atracado no Iêmen, em 12 de outubro de 2000 que Al-Zawahiri e Bin Laden se aperceberam do potencial enorme que tinham as recentemente criadas redes de notícias globais como a CNN e a SKY entre outras.

Os media já não estavam nas mãos de políticos ou pessoas com interesse político. Estavam, agora, nas mãos de empresários que só tinham um objetivo: audiências e o consequente lucro.

Agora já não havia "encobrimentos" ou "temas sensíveis" ou "interesse público".

Se era notícia, se o público queria ver, seria transmitido, com todo o realismo possível, sem filtros, "o jornalismo realidade", o "jornalista herói", o espetador que assiste, em direto, a ataques, invasões e guerras (sangue incluído, de preferência!)

Nem os líderes da Al Qaeda sabiam do potencial de difusão informativa desses canais mas o atentado ao USS Cole provou-o.

Um ataque terrorista bem dirigido, a um alvo sensível e simbólico num local com boa cobertura mediática podia ter um efeito avassalador e chegar a todo o mundo em poucos minutos.

E assim se "corporizou" o 11 de Setembro de 2001, 11 de março de 2004 em Madrid, o 7 de julho de 2005 em Londres.

Mas também foi assim que se deu a cisão dentro da Al Qaeda.

Osama Bin Laden "encantou-se" com o mediatismo, a popularidade, a notoriedade, de ser um "inspirador" ora amado, ora temido, mas a ninguém indiferente.

Quando foi morto e os seus dispositivos digitais foram confiscados pelos Navy Seals Norte Americanos, foram encontradas milhares de horas de vídeos, notícias, entrevistas do Bin Laden, sobre o Bin Laden, em que se falava do Bin Laden, em que mostrava o Bin Laden (e muitos filmes pornográficos também).

Bin Laden ficou obcecado por si próprio, Al-Zawahiri continuava obcecado pela causa e pela sua "Base".

Embora nunca tenha havia uma rutura e muito menos uma deslealdade, houve, sem duvida alguma, entre 2007 e 2011, um afastamento progressivo, pelo menos ao nível organizacional, entre os dois homens.

Há indicações e informações muito sólidas que indicam que o ataque à redação do jornal Charlie Hebdo, em Paris, a 7 de janeiro de 2015 não foi planeado nem sequer apoiado por Ayman al-Zawahiri.

Este apoiava que a Al Qaeda, depois de provar a eficácia do "novo terrorismo global" ou do "terrorismo mediático", devia voltar à sua "origem", à sua posição nas sombras, nos "bastidores" da geopolítica internacional.

Ayman al-Zawahiri advogava que a excessiva mediatização traz excessiva exposição e essa exposição vulnerabiliza organizações que, na sua génese, pela sua natureza e atividade, convém serem clandestinas.

Dessa perceção do perigo da excessiva mediatização resultou a expulsão de Abu Musab al-Zarqawi da estrutura dirigente da Al Qaeda dando, essa cisão, origem ao "Estado Islâmico" que, embora com grande impacto inicial e, de facto, enorme projeção mediática, foi, em termos reais, algo de muito efémero.

Por isso, não se estranhou que quando Osama Bin Laen foi eliminado e Ayman al-Zawahiri assumisse a liderança da Al Qaeda, a "Base" voltasse à sua função original e fundadora.

Desapareceu dos noticiários, dos cabeçalhos de jornais, deixou de operar ataques, deixou de ser notícia, muitos, mas muitos mesmo anunciaram o seu desaparecimento e decretaram o seu fim...

Mas, afinal, e sem "teorias da conspiração" tentem responder a estas questões:

Quem está a apoiar a pirataria no Golfo de Áden que custa, aos países, milhões de libras por dia obrigando a União Europeia e a NATO a ter uma força naval permanente destacada, que condiciona fortemente o tráfico marítimo (que depende da escolta), aumenta os preços de transporte para além de render milhares de milhões por ano em seguros de resgate pagos a piratas?

Quem desgastou tanto a presença dos Aliados no Afeganistão que os obrigou a uma retirada apressada e atabalhoada e a entregar, sem honra nem glória, o poder aos mesmos Talibãs, que tinham ido combater anos antes (e que serve de "santuário" à estrutura da Al Qaeda, inclusive al-Zawahiri, como foi provado com a sua morte)?

Quem mantém e domina a situação política e militar (e consequentes economias) do Iraque, Líbano, Líbia, Somália, Sudão, quem mantém a instabilidade no Iémen, na Síria, questões tão "tóxicas" politicamente que até os órgãos de comunicação social independentes evitam abordá-las?

Quem destabilizou, completamente, a exploração de gás italiana em Cabo Delgado em Moçambique de um modo concertado e eficaz ao ponto do Ocidente ter destacado uma força de segurança que, até ao dia de hoje, tem obtido uns muito modestos resultados?

Quem controla os esquemas de tráfico do Mediterrâneo que geram centenas de milhões de euros em lucros de tráfico, cobrem o Ocidente de vergonha e o obrigam a receber, a manter e a tentar gerir dezenas de milhares de refugiados todos os anos e a ter uma crise humanitária "dentro de portas"?

São algumas questões a que só se encontrará resposta se se procurar nas sombras, no oculto, enfim, na "Base" de todos estes fenómenos.

Não que, como é obvio, tudo o que foi mencionado, seja dirigido, executado, operado pela Al Qaeda. Mas, como sempre, a organização fundada pelos dois "rapazes" está na base, a fornecer meios, a "abrir" portas, a fazer os "contactos", a facilitar e a mediar negócios e, com isso, a obter os seus dois grandes interesses: instabilidade para o Ocidente e seus interesses e a lucrar muito, mas mesmo muito dinheiro.

Matar o Dr. Ayman al-Zawahiri não foi matar só o homem, o comandante, o líder.

Foi eliminar um verdadeiro génio do mal, o pensador, o planeador, o ideólogo dos atos mais hediondos que a humanidade conheceu, dos "esquemas" mais sórdidos que alguma vez tiveram lugar na época moderna.

Muitas vezes penso e partilho com os meus alunos: e se o al-Zawahiri tivesse investido todo o seu génio na medicina, na cirurgia pediátrica onde se formou?

Porque se Bin Laden era um fantástico comunicador, um agregador, um mobilizador de massas, al-Zawahiri era o génio da invenção, do planeamento, da execução, da concretização.

Não tenham dúvidas:

No dia 1 de Agosto de 2022 o mundo ficou mais seguro, mais estável.

Nesse dia, o terrorismo, o crime, o medo, tiveram um forte revés.

Nesse dia todos, mas todos os que, de alguma forma, combatem o terrorismo, o crime, o medo, a insegurança, tiveram uma vitória!

Parabéns por isso!

Mas mesmo assim...

Não perguntes por quem os sinos dobram...