O NOVO CONCEITO ESTRATÉGICO DA NATO: PERSPECTIVAS E INCERTEZAS SOBRE ABORDAGENS PARA COMBATER NOVOS E ANTIGOS DESAFIOS por David Morgado

04-07-2022

A cimeira da OTAN/NATO na passada semana em Madrid, foi muito mais que uma simples reunião. Foi um acontecimento com fortes implicação políticas, estratégicas, económicas e mesmo sociais. Foi, em rigor, o início de uma nova era.

É essa reunião que é analisada neste artigo pelo olhar atento e perspicaz do formador ISO-SEC David Morgado.

O NOVO CONCEITO ESTRATÉGICO DA NATO: PERSPECTIVAS E INCERTEZAS SOBRE ABORDAGENS PARA COMBATER NOVOS E ANTIGOS DESAFIOS

Por: David Morgado

David Morgado é formador da ISO-SEC nas áreas do Ciberterrorismo, Cibersegurança, Ciberdefesa, Ethical Hacking e Segurança da Informação.

Veja a sua nota biográfica.

Durante a última cimeira da NATO que decorreu esta semana em Madrid, foi aprovado o seu novo Conceito Estratégico, 12 anos após o último (curiosamente em Lisboa), identificando-se as principais ameaças, desafios e tendências para os 30 países aliados.

No documento que o transcreve, é manifestado logo no Prefácio, a necessidade de se apontar para um novo Norte, não só pelas recentes ações da Rússia, o perigo constante do terrorismo e da instabilidade nos países em desenvolvimento, mas também pelos jogos de bastidores da China, não faltando o desafio das alterações climáticas e da perspetiva de género.

No que concerne à Federação Russa, ao contrário do Conceito de 2010 que procurava aprofundar as relações com o seu antigo adversário, o novo Conceito aborda agora a necessidade de se reforçar as capacidades de defesa dos países vizinhos em termos de meios, assim como de reforçar igualmente, as capacidades de Cibersegurança e de Informação de todos os países aliados. Guerra Híbrida e Guerra da Informação são áreas onde a Rússia não só intervém confortavelmente, como deve ser reconhecida a sua capacidade e proficiência de operação nestas matérias. Uma das questões aqui não respondidas, são que ações a NATO tomará em relação à continuidade da agressão da Rússia à Ucrânia, ou se manterá, pelo menos oficialmente, a sua postura neutra. O prolongamento do conflito de forma não decisiva tenderá a diminuir o foco no seu acompanhamento. Mesmo com o evoluir da crise económica mundial resultante.

Mas se a NATO está apenas preocupada com a sua própria esfera de influência e a intenção da Rússia de aumentar a sua própria, deverá prestar atenção mais acima do que o Atlântico Norte. De facto, de forma decetiva, a Rússia tem aumentado a sua presença no Ártico e instigado às Nações Unidas para a definição e estabelecimento de plataformas continentais, nomeadamente a sua, assim como a liberalização da exploração dos seus recursos marinhos ou sob a crosta terrestre.

A nível de terrorismo e instabilidade internacional, apesar destas matérias terem sido mencionadas, o seu desenvolvimento não foi muito aprofundado, nomeadamente no contexto psicossocial, tendo sido identificadas apenas algumas causas e consequências, derivadas da exploração das tecnologias acessíveis ao cidadão comum. Conhece-se os principais agentes envolvidos no tráfego ilegal de armas e matérias NRBQ [1] e os seus potenciais clientes. Muitos deles inimigos declarados de alguns países aliados. O reforço de meios e capacidades em termos de segurança interna e cooperação internacional deverá ser tido mais em conta, nomeadamente junto das áreas em conflito nos dias de hoje.

A apresentação da China como um adversário a ter em conta foi uma das novidades. Apesar de ter sido introduzida de forma suave, atendendo à sua presença e influência no mundo, foram identificadas positivamente as áreas em que a China atua e como atua, por vezes de forma coerciva, sobretudo a nível económico e tecnológico. Já a própria não se fez esperar por expressar o seu descontentamento, afirmando que a NATO participou em mais conflitos internacionais do que a China na sua história e acusando o Conceito de traçar linhas ideológicas e ainda manter uma doutrina do tempo da Guerra Fria. Apesar de supostamente, a China não interferir nos assuntos internos dos outros Estados, o que ela não referiu, é que existem atualmente outras formas de Guerra. Clausewitz afirmava que a "Guerra é a continuação da Política com outros meios" (e não "por outros meios" como tantas vezes aparece). Comprar dívida, conceder empréstimos e confiscar matérias com a desculpa de perigo à saúde pública podem ser formas de guerra. Só que com outros meios. Mesmo a nível tecnológico e académico, está há muito identificado as ações e capacidades de espionagem industrial que a China explora para o seu próprio proveito, sendo um desafio permanente a sua contenção. Já o como se poderá refrear esta fome de conhecimento é um desafio ainda por revelar.

Estando a decorrer em Lisboa em simultâneo, a Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, propositadamente ou não a necessidade de abordar as alterações climáticas não foi esquecida. Sendo as Forças Armadas dos países aliados cada vez mais empenhadas em operações de assistência às populações em situações de Catástrofe, a necessidade de aprofundar conhecimentos, meios e capacidade de interoperabilidade nestes contextos é presentemente crítica. No combate per si às alterações climáticas, a NATO apresentou o objetivo ambicioso de reduzir em 45% as suas emissões até 2030, e reduzir as emissões líquidas a zero até 2050. Ambicioso mas não impossível, tal como o objetivo dos 2% do PIB alocado para a Defesa por todos os países aliados. A proveniência dos materiais necessários para a construção de estruturas produtoras de energias renováveis é que deverá ser tomada em conta, já que muitos desses materiais provém da própria China que a NATO assume como adversário a ter em conta.

Esta necessidade não advém apenas de altruísmo ambiental. Muitos dos países da União Europeia dependem do gás russo. E tem sido um desafio garantir o fornecimento deste e doutros recursos por outros meios. Daí também estar patente a vontade de alargar a filiação a outros países democráticos e aprofundar as relações com a União Europeia, mesmo que alguns países membros como a França pretendam se distanciar e aumentar a autonomia comunitária em termos de Defesa Coletiva.

A filiação também foi um assunto interessante nesta Cimeira. A posição da Turquia quanto à adesão da Suécia e da Finlândia mudou consideravelmente. Depois de alguns acordos comerciais e militares, manter a sua política quanto à Rússia (bastante dupla), à Síria e às organizações curdas como o PKK e a promessa de não ingerência nesses assuntos por parte dos 2 países, a Turquia mudou a sua posição. Tudo tem um preço. Mas analisando bem, não foi a Turquia que mudou, foram os restantes países.

A perspetiva da necessidade de garantir os 360º de capacidade de defesa em todos os ambientes (mar, terra, ar, espaço e ciberespaço) obriga a vermos o território aliado no seu todo de uma forma holística. Inclusive no fundo do mar pela importância que os cabos submarinos apresentam atualmente nas comunicações e fluxo de informação. O livro 2034 de Elliot Ackerman e de James Stavridis ilustra alguns dos possíveis impactos que poderão ocorrer caso algum desses cabos seja danificado/neutralizado. Tendo em conta que o Ser Humano possui a tendência de só se focar no que parece ser importante no momento, e normalmente uma coisa de cada vez, essa necessidade real será um desafio. De facto, os adversários da NATO procuram de forma permanente qualquer possível abertura e/ou fragilidade para a explorarem, e colocarem a capacidade, a imagem e os próprios países aliados em causa.

O comum dos mortais poderá se perguntar, no entanto, a razão de não estarem presente medidas concretas e práticas. Sendo a divulgação do Conceito, algo oficial, inclusive para os adversários da NATO, essas só deverão ser conhecidas pela sua implementação. Tudo o resto deverá sem acompanhado com atenção. E apreensão.

(1) Nuclear, Radiológico, Biológico e Químico