SUBSTITUIR O DÓLAR – UMA VITÓRIA PÍRRICA OU UMA CATÁSTROFE EVITÁVEL? por David Morgado

David Morgado é oficial da Marinha Portuguesa e formador da ISO-SEC nas áreas do Ciberterrorismo, Cibersegurança, Ciberdefesa, Ethical Hacking e Segurança da Informação.
A visita do Presidente brasileiro Inácio Lula da Silva à China trouxe à mesa mais do que os habituais assuntos diplomáticos e a Guerra na Ucrânia. O combate ao dólar foi mais uma vez abordado. Não sendo um conceito novo, os mais recentes desenvolvimentos no panorama internacional obrigam a revermos todas as suas perspetivas.
A Guerra na Ucrânia, um dos assuntos mais debatidos atualmente, introduz várias variáveis ao jogo político e económico. Se por um lado as sanções à Rússia têm prejudicado a sua economia e capacidade bélica, ainda que de forma limitada, paralelamente, têm permitido à Índia e à China aproveitarem-se da situação e aplicarem as suas realpolitiks à margem dos dogmas morais ocidentais.
Como afirmou o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, S. Jaishankar, "a Europa tem de abandonar a ideia de que os problemas da Europa são os problemas do mundo, mas os problemas do mundo não são os problemas da Europa". A venda de recursos e matérias primas à Índia e à China a preços reduzidos e a compra de equipamento e outros componentes têm permitido a todos a persecução das suas agendas.
Analisando só esta perspetiva já se abordaram três dos cinco países dos BRICS. A presença do Brasil nesta discussão provém das trocas e dependências comerciais com a China (1/3 das suas exportações) e com a Rússia (13.º maior parceiro comercial e o principal fornecedor de fertilizantes para agricultura, um setor chave na economia brasileira) que, espera o presidente do Brasil, ao seguir ambas as esteiras, lhe traga dividendos.
Seguindo uma perspetiva puramente económica, e cujas posturas de alguns países demonstram desconhecimento, substituir o uso do dólar (e também do euro) por yuans, rublos ou mesmo por uma nova moeda, poderá trazer ganhos a curto prazo, nomeadamente para os países que adirem e que recebam benefícios por usarem estas moedas nas suas trocas comerciais.
No entanto, pese embora as trocas comerciais e os pagamentos possam até aumentar inicialmente, uma moeda para que seja considerada (e para que funcione) como uma reserva monetária implica mais considerações.
Ray Dalio no seu livro Princípios para Lidar com a Nova Ordem Mundial, refere que, "uma moeda de reserva (Reserve Currency) é uma moeda que é aceite em todo o mundo para transações e poupanças. O país que imprime a Principal Moeda do mundo ocupa uma posição muito poderosa e a dívida que é denominada na moeda de reserva do mundo constitui o pilar mais fundamental dos mercados de capital e das economias do mundo" (2022, p. 25). Além de acrescentar outro tipo de garantias, como a emissão de mais dívida, emprestar mais dinheiro (mesmo sem mais capacidade de reserva) e possuir mais influência na Ordem Mundial.
Daí a China almejar esse estatuto.
Pelo contrário, a perda deste estatuto é normalmente acompanhada de convulsões traumáticas a nível político e social.
Daí os Estados Unidos lutarem por manter o seu status quo.
Cumpre referir, no entanto, que pese embora a detenção de commodities, dívidas soberanas e superioridade na ordem mundial, sejam os elementos principais na escolha de uma moeda como moeda de reserva, não são os únicos.
Uma reserva monetária é muito mais do que a moeda em si.
Questões políticas, económicas, culturais e até sociais influenciam na sua escolha.
Escolher o dólar ou mesmo o euro, para além das facilidades em termos de transações, implica, ainda que de forma informal, a defesa dos princípios que essas moedas defendem – os valores democráticos e ocidentais.
O mesmo se aplica de forma inversa no seu abandono.
É preciso também ter em conta, que emitir mais dívida do que se é capaz de pagar ou imprimir mais dinheiro do que as reservas que se possui pode trazer consequências nefastas a longo prazo.
Assim como a perda de estatuto.
Atualmente, grande parte da dívida soberana dos Estados Unidos foi comprada pela China, o que os coloca numa posição sensível em termos financeiros.
Mas uma decisão radical como exigir o pagamento dela pela China de forma a desvalorizar ou comprometer o dólar fará com que a economia mundial fique mais comprometida ainda, face ao elevado número de transações e dependências de muitos países (senão a maioria) em relação ao dólar.
No final da equação, o resultado poderá não ser favorável à China.
Diz-se que o general Pirro, após ter recebido os parabéns pela custosa vitória da batalha de Ásculo terá afirmado que "mais uma vitória como esta e estou perdido".
O mesmo se poderá passar com a China e a dívida americana.
Mais ainda, com a correta propaganda, os seus parceiros económicos irão perder confiança num país "concentrado" unicamente nos seus interesses.
Como no caso da divulgação da chamada China's debt trap[1].
O "truque" será jogar no longo prazo, algo que a Rússia e sobretudo a China fazem de uma forma que mesmo com todos os sinais, o ocidente continua a não conseguir visualizar.
Ao mostrar (e explorar) as fragilidades das políticas ocidentais, apresentar soluções alternativas, como uma nova moeda de reserva, e mostrar-se como um país amigo e de confiança, a China consegue angariar países para a sua esfera de influência.
Por outro lado, como abordado no livro War by other Means: Geoeconomics and Statecraft de Rober Harris (2016), embargos injustificados, políticas económicas e empréstimos agressivos têm afastado países da sua esfera.
Ainda assim, os Estados Unidos demoraram anos a reagir às várias Belt and Road Initiatives[2], só materializando um plano em 2022 com a iniciativa Build Back Better World, transformada posteriormente na Partnership for Global Infrastructure and Investment.
Tal como a China, os EUA sabem que, mais do que conquistar, precisam de controlar. Não só em termos de recursos, tecnologia e cadeias logísticas, mas também os seus parceiros ou aliados.
O que nos traz ao desafio europeu.
A Europa, e neste ponto devemo-nos referir à União Europeia, se quiser manter-se como uma potência de facto, deverá escolher qual o lado do tabuleiro que quer ficar.
Não só em termos políticos e económicos, mas também sociais.
Daí que as declarações recentes de Emmanuel Macron em relação à crise de Taiwan e da Guerra na Ucrânia[3], assim como a necessidade da União Europeia se afastar do dólar[4], para além de mostrar um desalinhamento não existente da União Europeia com o ocidente, expõem a continuidade do desejo do Presidente francês em querer a França como a charneira da União Europeia. E a relegação da Alemanha para uma posição menor. Fatores que serão certamente explorados pelos seus adversários.
Uma neutralidade europeia e o seu afastamento dos Estados Unidos, mais do que facilitar a ascensão da China, não será garantia da sua independência política e económica, e muito menos securitária.
Apesar da pirâmide da Estratégia do General Beaufre ter ficado mais complexa com o passar dos anos, contra grandes poderes, a multipolarização deverá dar lugar a uma bipolarização novamente.
E o adiamento dessa decisão poderá levar a um custo muito mais pesado do que se tem em mente.
Com a Índia claramente a querer manter-se afastada do choque entre as grandes potências atuais, mesmo que internamente desejando que um dos lados vença, caberá aos Estados Unidos e sobretudo à União Europeia trabalharem em conjunto e realmente de forma alinhada, não devendo os primeiros abusar da boa vontade dos segundos nem os segundos envolverem-se em quezílias internas para mostrar que país membro tem mais poder ou influência. Muitos outros ao verem esta união seguirão nas suas águas.
Quiçá Nova Deli.
A História demonstra que cada mudança da principal moeda usada pela moeda de reserva, é acompanhada antes e depois por grandes flutuações financeiras, alterações na Ordem Mundial e conturbações políticas e sociais.
Algo que todos os players deverão ter conhecimento.
A segunda guerra mundial e a adoção do dólar com a Convenção de Bretton Woods pode já ser uma memória vaga, mas as razões para a sua escolha e o conhecimento dos impactos no seu abandono não poderão ser esquecidos.
[1] Eduardo
Baptista e Kanishka Singh (2023). China calls US debt trap accusation 'irresponsible'. https://www.reuters.com/world/china-calls-us-debt-trap-accusation-irresponsible-2023-03-30/
[2] A Belt and Road Initiative, a Polar Silk Road e a Digital Silk Road.
[3] Prince Michael of Liechtenstein (2023).The Chinese-European conundrum. https://www.gisreportsonline.com/r/european-chinese-relations/
[4] Sergio Goschenko (2023). French President Emmanuel Macron States Europe Must Reduce Its Dependence on the US Dollar to Avoid Becoming 'Vassals'. https://news.bitcoin.com/french-president-emmanuel-macron-states-europe-must-reduce-its-dependence-on-the-us-dollar-to-avoid-becoming-vassals/