
VIDAS EM RISCO: A LUTA DIÁRIA PELA SOBREVIVÊNCIA NA GUINÉ-BISSAU por Manuela Pimenta

Manuela Pimenta é Licenciada em Ciências Farmacêuticas e
Mestre em Análises Clínicas. É especialista em Farmácia
Comunitária e em Análises Clínicas e Genética Humana pela
Ordem dos Farmacêuticos. Diretora técnica da Farmácia de S.
João em Ponte de Lima. Farmacêutica Humanitária, somando já
várias Missões de capacitação a nível de saúde comunitária e
diagnóstico laboratorial na Guiné-Bissau, nomeadamente no
Hospital Pediátrico de S. José em Bôr. Sobre esta temática tem
sido convidada para falar em vários ciclos de conferências.
"A maior riqueza de um povo é a sua saúde"
Amílcar Cabral
"Estar vivo na Guiné-Bissau é muito arriscado" - diz o meu Pai,
desde que começou a dedicar a sua vida a este resiliente povo. Ao fim de 40
anos, este farmacêutico humanitário regressou ao país onde esteve na guerra
colonial, desenvolveu um Laboratório low-cost,
e um Instituto Biomédico "Dom Settimio" num hospital pediátrico localizado
na periferia da cidade de Bissau, e financiou a construção de uma Maternidade e
de uma Casa das Mães em Cachéu, juntamente com duas instituições vianenses: o
Rotary Club de Viana do Castelo e a Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau
(ACGB).
Se eu já vou na 7ª missão, ele, por sua vez, já lhes perdeu a conta. Quando regressa, só pensa na próxima viagem.
A Guiné-Bissau tem um encanto especial, uma magia secreta que deixa os humanitários rendidos ao seu povo e à sua multiculturalidade. É quase impossível adjetivar ou definir este encantamento que nos faz atravessar continentes e deixar tudo para trás. Talvez seja pela ausência de solidão a que a vida aqui nas grandes cidades nos condena, ou pela maneira simples de aproveitar cada segundo ou talvez os sorrisos abertos com que nos recebem a perguntar i kuma[1]? Não sei!! Mas ao fim de um dia de trabalho, festeja-se por se estar vivo. Não há dores? Nada de febre? Toca a "comprar saldo" e a festejar! Não há nada melhor que um fim de tarde quente no Kais a beber uma cerveja Cristal e a comer mancarra salgada, a confraternizar com os amigos, o que eles em crioulo designam por djumbai[2].
Apesar desta alegria espontânea, a realidade da Guiné-Bissau está longe de ser ideal, sobretudo no que diz respeito à saúde comunitária e hospitalar que enfrenta inúmeros desafios, decorrentes da escassez de infraestruturas médicas e, pior ainda, das precárias condições da prestação dos cuidados de saúde.
Além disso, a falta de profissionais de saúde qualificados, a escassez de equipamentos médicos básicos, reagentes, medicamentos e meios complementares de diagnóstico agravam ainda mais a situação. Estes obstáculos limitam o acesso a cuidados de saúde de qualidade e colocam em risco a população guineense, nomeadamente os mais vulneráveis: grávidas e crianças.
Na Guiné-Bissau, existem alguns serviços gratuitos, tais como a vacinação, a pesagem e testes rápidos para rastreio de infeção VIH e malária. Existem ainda grupos com gratuitidade de serviços: grávidas, crianças com menos de 5 anos de idade e idosos (> 60 anos). No entanto, para o resto da população, as despesas médicas são pagas na íntegra pelo doente, não existindo um Serviço Nacional de Saúde ou qualquer outro subsistema ou seguro. A Organização Mundial de Saúde (OMS) designa este tipo de pagamento pelo doente de "out of pocket", ou seja, pagamento direto. Assim, as dificuldades económicas da população são um dos principais obstáculos ao diagnóstico, em tempo útil, de inúmeras doenças. (1)
A falta de recursos financeiros das famílias para acarretar com as despesas médicas, incluindo consultas, exames e tratamentos, é uma realidade preocupante que resulta em diagnósticos tardios e muitas vezes na morte do doente por falta de tratamento atempado de uma doença que seria tratável, se detetada a tempo.
Por exemplo, Gabú e Cacheu, regiões com níveis elevados de pobreza extrema, gastam em média, respetivamente, 24% e 19% do seu consumo não alimentar em cuidados de saúde. A maioria dos pagamentos diretos são para medicamentos, acontecendo o mesmo noutras regiões do País. Nas áreas urbanas, as pessoas gastam mais em exames médicos, consultas médicas e internamentos, comparado com as áreas rurais.(2)
Outra questão alarmante está no acesso aos meios de transporte, especialmente nos de evacuação, onde são os familiares do doente que suportam todos os custos de deslocamento da ambulância ou de outros meios utilizados para a evacuação. A falta de um sistema de transporte adequado e acessível coloca em risco a vida dos doentes, pois atrasa ou impede o acesso aos serviços médicos especializados.
A população guineense dá uma importância extremamente significativa quer aos Praticantes de Medicina Tradicional quer às matronas, que auxiliam nos partos. A população tem acesso fácil e total confiança nos curandeiros, djambacus[3] e benzedores[4], existentes na maioria das tabankas[5], sendo os primeiros a serem procurados, tanto por problemas de saúde simples como para tratar problemas complexos, diagnosticados nos serviços de saúde. Por exemplo, quando uma mulher tem dificuldade em engravidar, recorre normalmente a lugares sagrados onde se invocam espíritos poderosos (iran[6], balobeiro[7] e djambacus). E, para agravar a situação, ainda existe uma grande diversidade de etnias e crenças religiosas que tem fomentado a influência de valores socioculturais e tradições ancestrais que resultam num aumento de gravidezes em idade precoce e pouco espaçadas, baixa procura dos serviços de planeamento familiar, de consultas pré-natais e de partos assistidos por profissionais de saúde.
Estão assim reunidos todos os ingredientes para que a redução da mortalidade materno-infantil seja, aos dias de hoje, uma tarefa difícil, quase uma miragem. Há falta de quase tudo:
- Infraestruturas médicas e de profissionais de saúde qualificados: muitas mulheres não recebem a devida vigilância pré-natal, resultando em gravidezes não vigiadas. A ausência de cuidados pré-natais adequados torna mais difícil identificar e tratar precocemente complicações como a diabetes gestacional, infeção VIH/SIDA e a pré-eclâmpsia, uma condição potencialmente mortal, se não diagnosticada atempadamente;
- Assistência profissional durante o parto o que aumenta o risco de complicações graves, como hemorragias pós-parto, que podem levar à morte materna se não forem tratadas prontamente. Ausência ainda de medicamentos adequados e de profissionais capacitados para lidar com estas emergências obstétricas.
- Acesso aos cuidados de saúde que também resulta em partos não assistidos, aumentando o risco de complicações durante o parto e de mortalidade neonatal. Também se verifica a escassez de incubadoras.
- Transporte adequado e acessível, o que dificulta a deslocação das grávidas para instituições de saúde, especialmente nas áreas rurais e remotas. O atraso na chegada a uma estrutura médica que, na maioria das vezes, não tem as mínimas condições de assepsia nem medicação de emergência necessária, pode ter consequências devastadoras para a mãe e bebé, podendo resultar em óbito materno, neonatal ou de ambos.
Para tornar este cenário ainda mais aterrador, este país da África Subsaariana, com inúmeras doenças endémicas e emergentes, ainda tem três Titãs sempre à espreita (anemias, malária por Plasmodium falciparum e a infeção VIH/SIDA) que são o verdadeiro "triangulo da morte", principalmente quando presentes em co-infeção no mesmo indivíduo. O problema agrava-se ainda mais na população mais vulnerável, como as grávidas e as crianças < 5 anos de idade.
Torna-se urgente tomar várias medidas que tenham impacto na saúde comunitária e hospitalar de modo a melhorar a saúde da população, especialmente das mulheres e crianças, sendo prioritário apostar, de imediato:
- nas infraestruturas de saúde, apetrechando-as com material adequado e necessário e garantir um rápido acesso aos serviços de saúde em todas as regiões
- investir na formação especializada e na retenção de profissionais de saúde qualificados;
- capacitar mais profissionais de saúde, como médicos, farmacêuticos, enfermeiros e parteiras;
- implementar um sistema nacional de saúde;
- assegurar o fornecimento de medicamentos controlados, de elevada qualidade e de acordo com a regulamentação exigida, garantindo deste modo a eficácia, segurança e qualidade dos medicamentos;
- dotar as unidades de saúde de equipamentos médicos básicos, mas robustos e de fácil manutenção, tendo a preocupação de escolher fornecedores competentes e capacitados que garantam o fornecimento constante das encomendas a custos reduzidos de transporte e reagentes de qualidade a preços acessíveis. Implementar programas de controlo de qualidade laboratorial;
- implementar ainda programas de cuidados pré-natais, assistência ao parto e cuidados pós-natais;
- apostar fortemente em políticas e programas de prevenção e controlo de doenças, como anemia, malária, tuberculose, VIH/SIDA e doenças tropicais negligenciadas;
- incentivar a adesão da população ao Plano Nacional de Vacinação e promover programas de vacinação em massa contra doenças infeciosas emergentes, salientando a hepatite B que tem uma prevalência elevada;
- dar especial importância ao diagnóstico de doenças crónicas não transmissíveis, através de rastreios à população;
- reforçar programas de educação para a saúde, nomeadamente nutrição adequada, higiene alimentar e planeamento familiar.
A Guiné-Bissau só conseguirá evoluir quando for capaz de proteger a Vida e quando o dar à luz não for uma sentença de morte. O futuro risonho deste país, que tantas paixões tem despertado ao longo da sua existência, está nas mãos desta geração de jovens dinâmicos e lutadores que serão a força motriz da mudança, do desenvolvimento e da prosperidade.
Eu acredito!
Nô bai.[8]
Manuela Pimenta
Babtida
Farmacêutica Humanitária
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Notas
[1] "Como estás?" em crioulo da Guiné-Bissau
[2] "Passar o tempo, conversar"
[3] "Curandeiros"
[4] "Pessoa que pretende afastar doenças e feitiços por meio de rezas e benzeduras; curandeiro"
[5] "Aldeia, distrito, área rural"
[6] "Designação genérica de deus, protetor e castigador; espírito que aparece normalmente sob a forma de serpente, mas que pode assumir outras formas"
[7] "Pessoa responsável pelo cumprimento e pelas práticas rituais"
[8] "Nós vamos!" em crioulo da Guiné-Bissau
Referências
1. Mundial Da Saúde O. Enfrentar o Desafio da Saúde da Mulher em África Resumo do relatório da Comissão da Saúde da Mulher na Região Africana ESCRITÓRIO REGIONAL para a África Edição resumida [Internet]. [cited 2023 Jun 13]. Available from: https://www.afro.who.int/sites/default/files/2017-06/who_acsummary_pt-2012.pdf
2. Bissau G. Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2018-2022 PNDS III. 2018.